Liga da Tempestade - Cover

“Vacilei parado, torcendo para não ser atingido pelos detritos daquele desastre. Alguma entidade governante do universo resolveu fazer justamente o contrário. Nunca tive prestígio mesmo com as autoridades. Um raio projetou-se na minha direção. Não deu tempo de escapulir. Sequer deu tempo de piscar. Às vezes, o medo dá poderes sobrenaturais às pessoas, mas fugir de uma bagaça que viaja na velocidade da luz é impossível, não importa a emoção predominante.”

Liga da Tempestade - Capítulo 1

Poucas pessoas podem dizer o momento exato quando decidiram o que fazer da vida. Eu posso. É bem verdade que o destino me jogou em um universo paralelo, forçando uma mudança de planos. Nesse sentido, sou igual a todo mundo. Não pelo universo paralelo, claro, mas por me ver obrigado a adaptar meus sonhos de grandeza à irritante realidade inevitável.

Sentado no píer de apoio do Adelaide Sailing Club, eu via a vida passar sem a minha interferência, igual às ondas à minha frente, seguindo seu caminho fatal até a arrebentação. Os respingos da batalha sem esperanças contra os pilares do píer salpicavam minhas pernas, balançando soltas acima da água. Mas eu não me importava. Só queria vagar por ali, respirando a sofisticação do clube na esperança de assimilar o sucesso de seus sócios por algum processo mágico. Por osmose, quem sabe. No mínimo, a pausa ociosa aliviaria o calor infernal do meio dia na brisa fresca do mar. O aroma salgado insistia em me lembrar de peixe cozido, inundando a boca de saliva. Enquanto eu assistia à manhã chegando a seu fim, a barriga roncava, vazia. Tudo rotina.

O lugar era inspirador. Os sócios do clube eram frequentadores assíduos da alta sociedade de Adelaide. Em nenhum outro lugar da costa sul australiana se podia encontrar aquela variedade de lanchas e veleiros, espalhados em ancoradouros largos de madeira, balançando ao sabor das ondas até onde permitiam suas amarras frouxas de nylon. O exército de empregados com trajes brancos de marinheiros exercia suas tarefas de manutenção sem perturbar a sinfonia de velas estalando ao vento, da água açoitando os cascos dos barcos ou da música new age nos meus fones de ouvido.

Adam, meu melhor amigo, torcia o nariz e fazia careta quando eu elogiava o Sailing Club. Num esforço em vão para esconder sua inveja dos sócios, ele bufava, reclamando da opulência do clube. Falava com insistência suspeita de uma afronta ao trabalho honesto. É preciso reconhecer que havia de fato certa extravagância na decoração do clube, embora eu não desse importância a esse detalhe. Encarado sem paixões, o Sailing Club refletia a atitude de uma gente no comando de seu próprio destino. Eles tinham lá suas preocupações com pessoas menos favorecidas – como eu, por exemplo –, mas não deixavam as desigualdades sociais impedi-los de usufruir de suas conquistas.

Eu não era sócio, claro. Na verdade, nem empregado. Apenas contava com a tolerância dos diretores e a conivência dos seguranças, alguns amigos sinceros, outros só incapazes de resistir à minha personalidade encantadora. Eu fazia bico de garçom quando os titulares faltavam ou entre os temporários contratados para as festas; mantinha-me à disposição para servir de gandula e caddie aos esportistas; ouvia as histórias nem sempre interessantes dos velhos sócios, sentados em seus tronos de camurça na ampla varanda; e me dispunha a cumprir qualquer mandato que rendesse uma boa gorjeta. Apesar de não ser empregado, o clube patrocinou meu curso de habilitação de arrais amador, abrindo as portas – ou deques – dos iates e veleiros que passei a manobrar.

Naquele final de manhã, eu procurei alguma coisa para fazer, mas não havia nada. Era quarta-feira, tecnicamente um dia de trabalho, quando instalações dedicadas ao lazer deveriam ficar às moscas. Na prática, quem já trabalhou para uma clientela exclusiva sabe que deve esperar o inesperado. Às vezes, dias no meio da semana se tornam fervilhantes, tanto quanto é possível ver o clube vazio num domingo à tarde. Parte do encanto de ser quem aquelas pessoas são está justamente em fazer o que se quer, no momento que se quer.

Sem ninguém para quem oferecer meus préstimos, deixei-me embalar no ritmo das ondas. Fechei os olhos voltados para o céu, as mãos apoiadas atrás das costas, nas tábuas do píer, as unhas roçando a madeira lisa e dura como uma superfície metálica. Enquanto saboreava o limbo entre a consciência e inconsciência, o pé de alguém puxou meu braço para trás. Caí de lado, meio desnorteado.

– Tá ocupado? – perguntou o intruso.

Ao identificar quem me acordou, pus-me de pé com a velocidade de um soldado de plantão, pego no flagra pelo comandante do quartel. Quase bati continência.

– Não, sr. Bevan – respondi. – Só descansando.

– Pergunta retórica, Mark.

– Ah sim, entendi. O senhor precisa de alguma coisa?

– Quero manobrar minha banheira até um lugar bom para pescar. Conhece alguém capaz?

– Estou às ordens, sr. Bevan. Deseja que eu embarque os mantimentos?

– Não. Só dirija e me faça companhia. Vamos jogar conversa fora e cerveja dentro.

– Com prazer.

Tomamos o caminho para a vaga na marina onde repousava a banheira do sr. Bevan, um iate chamado Tormenta com 540 pés de comprimento, pesando 13 toneladas e capacidade para receber pelo menos 100 convidados. Produzida num estaleiro holandês, com 6 deques acima da linha da água, elevadores e piscina, a embarcação incluía as novidades mais espetaculares da tecnologia moderna. A rigor, pilotava-se sozinha.

Yamboo Bevan nasceu aborígene. Seu povo não fazia parte de etnias cujos membros mantêm vestígios de rituais tradicionais apenas para o consumo turístico, como os pintubi. Entre esses grupos assimilados, os nativos recebem salário do governo em reservas congeladas no tempo pela força de decretos. Bevan, ao contrário, nasceu nas vastidões implacáveis do deserto de Gibson, seu povo endurecido pelas adversidades naturais, embora fiel às raízes culturais. O governo não sabia sequer o tamanho da população de etnia aranda e Bevan usava sua formidável fortuna para mantê-los livres de olhares curiosos.

Até onde se sabia pelas fofocas sussurradas, ele chegou a Adelaide com 16 anos, sozinho, sem dinheiro para comprar um chinelo e incapaz de entender uma palavra em inglês. Aos 66 anos, completados dias antes em uma festa de fechar quarteirão realizada no clube, seu patrimônio o alçava à lista das 10 pessoas mais ricas do mundo. Seu império econômico tinha à frente um conglomerado financeiro cujos tentáculos se espalhavam por países do norte e do sul, orientais e ocidentais, democráticos ou tirânicos. Gigante para além da imaginação das pessoas comuns, o banco nem chegava perto de alcançar a metade do patrimônio de seu acionista majoritário. Bevan controlava um número de corporações maior que as pulgas do cachorro de minha irmã.

À medida que nos aproximamos do iate, sensores espalhados em volta executaram a identificação biométrica do proprietário. Antes de chegarmos, uma porta se abriu a bombordo, liberando espaço para uma passarela revestida de carpete azul marinho projetar-se do barco, repousando sobre a seção frontal do cais.

Acostumado a conduzir Tormenta, subi à ponte de comando numa pose de dono do barco. Nem dei importância ao salão de entrada, seu piso de mármore cinza claro italiano, suas duas escadas curvas, uma de frente para outra reproduzindo o símbolo do yin e yang, seu deque superior formado por três ambientes com sala de jantar, home theater e biblioteca. De ar blasé, passei pela área da piscina com raia de natação de 25 metros, sua iluminação interna arroxeada concedendo uma sugestão de mistério e seu aroma doce de água ozonizada. Com os motores ainda desligados, reinava no lugar o silêncio das bibliotecas, que sofreria uma perturbação quase imperceptível, uma vez acionada a propulsão.

Poucas embarcações estacionadas no Sailing Club ultrapassavam os limites máximos de calado e potência a ponto de requerer uma autorização obrigatória de partida da sala de controle do clube. Tormenta era uma delas. Ao cumprir o protocolo, não reprimi o prazer de me fingir de piloto de avião, comunicando a decolagem à torre de controle. Recebida a permissão, acionei os motores, plotei o curso de saída e pronto. Sem nada mais para fazer na qualidade de manobrista, desci ao convés de popa, onde o sr. Bevan passaria a tarde fingindo pescar.

Alcançando velocidades acima de trinta nós, Tormenta chegou ao destino em menos de uma hora. Escolhi as coordenadas do naufrágio de um antigo navio de guerra, transformado pelos corais em criadouro de peixes. Enquanto nossas linhas de pesca procuravam uma vítima distraída, trocamos no máximo dez palavras, a maioria relacionada à bebida. Esse era o costume. Apesar de não dar importância se os peixes aceitariam ou não os petiscos oferecidos, o sr. Bevan não queria saber de papo enquanto seu anzol estivesse na água.

Recostei na poltrona adaptada para pesca, de couro branco legítimo embora obediente às normas ecológicas. Imaginei um dia estar na outra cadeira, usando aquele intervalo idílico para consolidar decisões transformadoras para a vida de muita gente. O céu recheado de flocos de algodão macio, o vai-e-vem do barco ditado pela sucessão de ondas baixas, o grasnado distante de gaivotas à procura do almoço, a maresia fria na pele subindo pelas narinas e até o tremido leve da vara de pescar na mão, tudo contribuía para um transe letárgico, uma sensação de plenitude difícil de abandonar, tanto quanto de alcançar.

O tempo passou com a velocidade de uma corrida de 100 metros. Não me incomodei quando tudo acabou, grato pela chance de viver experiências além das minhas possibilidades. Momentos assim só se tornam de fato extraordinários porque são efêmeros. Estendê-los além da conta retira deles o sabor sobrenatural. A pescaria terminou com um mísero bicudo de 2,5Kg, devolvido ao mar tão logo foi capturado.

Pelo tablet de comando, plotei o curso de retorno, antecipando a melhor parte do passeio, quando o sr. Bevan se dispunha a conversar.

– O que tem feito na vida, além desse bico no clube? – ele perguntou, a título de pontapé inicial.

– Planos para o futuro – respondi.

– Que planos?

– Venho poupando uma grana, para ter um ponto de partida.

– Desse jeito, não vai chegar longe – disse Bevan.

O magnata tinha fama de ir direto ao assunto e gostava quando lhe respondiam na mesma moeda.

– É uma previsão ou uma praga? – perguntei.

– Previsão que pode ser corrigida – ele disse, sorrindo. – Não pense em poupar dinheiro. Pense em fazer dinheiro.

– Para o senhor, é fácil falar, mas não sou dono de banco. Ainda não. Quando for, serei seu pior concorrente.

Bevan jogou a cabeça para trás numa gargalhada.

– Não vejo a hora – ele disse. – Vou adorar medir forças com você. Mas quem falou que me referi ao banco? Não é assim que se faz dinheiro. Bancos são uma invenção genial para tirar dinheiro dos trouxas, mas não geram riqueza. Só tomam a riqueza dos outros.

O mar começou a se mostrar incomodado com Tormenta, cortando suas ondas com a insolência de uma princesa briolanja. O turbilhão no casco cresceu e o vento passou a açoitar de lado. Alcancei de novo o tablet de comando, para acionar mudanças de curso. Também coloquei os motores em ângulo, uma lição do curso de arrais para eliminar o balanço do barco e a possibilidade de enjoo. Feitas as correções, voltei à conversa.

– Não foi o banco que tornou o senhor rico? – perguntei.

– Não – disse Bevan, olhando-me nos olhos com a ternura de um pai. – Quando o sujeito chega a uma fortuna igual à minha, o povo fica apalermado com tanto dinheiro e perde o foco do que é importante de verdade.

Pelo tom de voz, duvido que o comentário se referisse a mim, mas vesti a carapuça, com capuz e tudo.

– O que é mais importante que sua fortuna? – perguntei.

– O método pra chegar lá e, mais ainda, o uso que faço dela.

– E o senhor vai me contar sua fórmula secreta?

Não era uma pergunta à toa. Pelo menos, não de todo. Uma luzinha de esperança se acendeu em minha consciência. Será que ele vai me dar uma dica de cocheira, daquelas só para os iniciados? Meu olhar de cachorro faminto me entregou. Bevan sorriu e abriu o tambor térmico revestido de aço cromado, para pegar mais cerveja.

– Acho que vai se decepcionar – ele disse. – Minha estratégia não tem nada demais. Só vejo certas coisas com mais clareza. Por exemplo, a experiência pessoal de cada um não deveria servir de base para dar conselhos a ninguém. O sujeito dá a entender que as escolhas dele são as únicas certas.

– No seu caso, a maioria das escolhas deve estar certa, julgando pelos resultados. Desculpe se o comentário parece puxa-saquismo. Não é minha intenção.

– Tudo bem – disse Bevan, descartando as desculpas com a mão. – Você tem razão. Eu escolhi bem mesmo, mas o problema é outro. Minhas decisões se deveram ao panorama do momento. Em condições diferentes, com pessoas diferentes, os mesmos caminhos não dariam os mesmos resultados. O importante é extrair de uma experiência bem sucedida as regras gerais. Depois, adaptar essas regras a outros negócios, com outras pessoas.

– Regras? – provoquei. – Que regras?

– Quer um exemplo? Sua atitude ilustra com perfeição o que não se deve fazer – ele disse, ressaltando o não com o dedo levantado. – Quando o sujeito diz venho poupando para conseguir alguma coisa, a poupança se torna o objetivo. A meta é atingir determinada quantidade de dinheiro, para só então agir de uma forma produtiva. Mas o dinheiro não deve ser o objetivo. Só os tolos o encaram dessa forma. É apenas um dos instrumentos para alcançar objetivos, esses sim importantes.

Enfiei a cara no tablet de comando, na esperança de disfarçar o calor que me subiu ao rosto depois daquele direto na boca do estômago. Aproveitei para reduzir a velocidade de Tormenta. Apesar da dureza de Bevan, direta e fulminante como as forças da natureza, eu não queria interromper a conversa com uma chegada prematura à marina.

– Não sei se entendi bem – eu disse, fixando um olhar de aluno aplicado.

– Então, vou explicar melhor – disse Bevan. – É sua atitude perante os obstáculos que importa. Imagine que sua vida é um edifício arruinado com um tesouro fantástico guardado no andar mais alto. Se você chegar ao tesouro, venceu na vida. Como pretende chegar lá?

– Suponho que não haja elevadores – eu disse.

– Não – retrucou Bevan. – A vida não tem atalhos fáceis.

– Nesse caso, subo pelas escadas.

– Claro. Nessa única decisão, já se afastou da conversa fiada de fazer poupança. Esperar que o dinheiro leve a algum lugar corresponde a… vamos ver… plantar uma árvore no térreo do nosso edifício e sentar num galho, esperando que ela cresça e te leve junto para o alto.

Não respondi de imediato, decidido a pensar melhor nas ramificações. A analogia era eloquente, tive de reconhecer. O problema com as analogias é que elas escondem ou ignoram aspectos essenciais. Eu não queria engolir o argumento com linha e anzol, apenas porque parecia razoável à primeira vista. Poderia haver ali uma cilada. Um teste para ver se eu era merecedor do resto da lição. Escolhi resistir, no mínimo para ganhar tempo.

– Entendo que seja bobagem para o senhor poupar valores irrisórios.

– Não perca o foco, Mark. O tamanho da poupança não faz diferença. Imagine o seguinte: se o sujeito quiser comprar uma nova indústria, por exemplo, também pode esperar até ter dinheiro suficiente. Neste caso, os recursos envolvidos seriam bem maiores que os seus, certo?

– Certo – concordei, arriscando o passo seguinte. – Mas a atitude seria tão errada quanto a minha.

– Isso mesmo. Gostei de ver.

Um frescor agradável percorreu meu corpo. Enchi o peito, engolindo com prazer o ar salgado com traços de peixe fresco.

– Ok, mas qual é a atitude correta? – perguntei.

– Passar direto à ação. Vamos voltar ao nosso edifício em ruínas. No frigir dos ovos, minha situação é igual à sua. Só cheguei a um andar mais alto.

– Pois é, o 620º andar, enquanto eu continuo no 5º subsolo.

Bevan sorriu e meneou a cabeça.

– Que seja, não importa. Só não esqueça por onde eu comecei. Seja como for, eu alcanço meus objetivos igual a todo mundo, por ação imediata e aproximações sucessivas. Em outras palavras, de degrau em degrau.

– Até aí, eu peguei.

– Tem mais – disse Bevan. – Uma escada não passa de uma sucessão de degraus. Pois bem, o dinheiro é apenas um degrau.

– Só um degrau? – insisti incrédulo.

– Tudo bem, vários degraus. Mas o dinheiro só tem utilidade, quando ajuda o sujeito a subir mais. Se ele se apega demais, o dinheiro provoca uma descida e não uma subida. Além disso, a gente também usa outras coisas para subir. A inteligência, o senso de oportunidade, alguma dose de sorte ou qualquer recurso de momento serve. Lembre-se também que o prédio tá um caco, rangendo em frangalhos. Alguns degraus vão rebentar. Se não tomar certas precauções, você vai cair. Por outro lado, existem lacunas. Você vai precisar dar saltos arriscados.

– Começo a perceber onde o senhor quer chegar – eu disse.

– Vamos testar, então. Onde quero chegar?

Tal qual uma rainha desfilando em meio à sua corte, Tormenta entrou na marina. Acompanhei a sucessão de barcos dos dois lados, enquanto procurava a melhor resposta. Seria imperdoável decepcionar um professor daquele.

– Em vez de esperar as condições ideais – eu disse –, devo tomar a iniciativa. Cabe a mim buscar meus objetivos, mesmo diante de um cenário hostil.

– É um bom começo – disse Bevan, aplaudindo e sorrindo.

– Obrigado.

– Pena que não é tudo. Lembre-se dos degraus. São etapas pequenas mas trabalhosas pra cacete, quando se juntam umas com as outras. Mas a rotina é a mesma: o sujeito não chega onde quer de um dia para o outro. Chega depois de superar uma quantidade enorme de pequenos obstáculos.

Para meu desgosto, chegamos à vaga demarcada para Tormenta, numa posição de destaque da marina. O barco estacionou sem minha interferência, projetando as amarras magnéticas, coladas de imediato ao atracadouro.

Se pudesse, eu estenderia a conversa pela tarde afora. Pensei em pedir ao sr. Bevan só mais alguns minutinhos, enquanto eu concluía os procedimentos de atracação, mas ele não se mostrou disposto a esperar.

Antes de desembarcar, apertou minha mão e me deu dez dólares australianos de gorjeta. Minha relação com ele me dava a liberdade de comentar:

– Ontem, trabalhei para seu filho aqui no clube e ele me deu cem dólares.

– É, mas o pai dele é rico. O meu, não.

Liga da Tempestade - Capítulo 2

Segui para a saída, dando as costas a Tormenta em seu berço de luxo. A brisa morna de final de tarde acariciou meu rosto a caminho do mar, perseguindo o mergulho rápido do sol, enquanto o clube recebia mais e mais clientes. Alguns vinham para esquecer o mundo corporativo entre drinques e conversas. A maioria tinha outras intenções. No ambiente descontraído, a troca de favores, ameaças e um ou outro papelote de coca rolava solta. Era o combustível para turbinar ou destruir carreiras. Bevan não fazia parte desse time. Já se encontrava longe, a caminho de sua mansão em Fitzroy, o bairro mais caro do sul da Austrália para quem acredita nos tabloides de fofocas.

Se eu quisesse, ainda descolaria um último trampo para encerrar o dia. Quem sabe alguém quer suar um pouco na quadra de tênis? Meneando a cabeça, descartei o pensamento. Tinha uma escada enorme para enfrentar agora. Caminhei pelo píer com o olhar no futuro. Não havia um pingo de dúvida. A fortuna destinada a ser minha estaria mais próxima a cada dia da vida, cada decisão tomada, cada bilhete premiado de loteria. O sr. Bevan não acredita em atalhos, mas quem disse que ele está certo em tudo?

Só não sabia que os planejadores urbanos lá do céu decidiram demolir o edifício da minha vida. Em seu lugar, colocaram uma construção maluca, cheia de escadas que não levam a lugar algum ou mudam de ideia a cada instante.

Atravessei apressado a ligação entre a área de navegação e os espaços sociais, desconhecendo que era minha última passagem pelo Sailing Club. Se eu soubesse que não voltaria mais ali, retardaria a despedida. Guardaria as lembranças num lugar especial do coração. Arrastaria os pés descalços no suave declive em direção aos barcos, forrado por um gramado de dar orgulho aos melhores times de futebol do mundo. Contemplaria devagar a fachada do restaurante principal no alto da rampa, seus janelões de vidro já iluminados pelas luzes amarelas de marcação do perímetro. Não perderia a chance de visitar uma última vez a garagem de barcos, conferindo a organização caótica – ou a desorganização ordenada – de embarcações, velas, motores, mastros, cordas e toda a parafernália náutica.

Nem sequer me despedi dos amigos conquistados ao longo de vários anos. Um aperto atormenta meu coração à lembrança do pessoal do clube. Eu desapareci sem uma palavra de despedida. Eles teriam o direito de considerar minha atitude um desdém à sua amizade. Se me perdoaram, são melhores que eu. No lugar deles, admito que o sumiço à francesa de alguém querido me deixaria magoado.

Mas a vida seria fácil demais, se a gente soubesse o resultado de nossas escolhas com antecedência.

Com a audácia do Papa-léguas, corri desembestado na direção do precipício. Liguei para meu amigo Adam, a pessoa perfeita para criticar meus planos.

Combinamos um encontro no setor gratuito do Jockey Club. Eu conhecia o local. Numa das extremidades do terreno, uma área poeirenta de terra vermelha batida permanecia aberta ao público não pagante. Nem dava para ver grande coisa. A arquibancada Norte-5, à direita, obstruía pelo menos um terço da pista, incluindo as baias de largada. O setor gratuito era despojado de luxos desnecessários, como cadeiras e banheiros, além dos serviços de manutenção ou limpeza. A única concessão do Jockey consistia nas bancadas de apostas. Sem ingressos, sem conforto, mas não sem apostas.

Nos sábados e domingos de verão, os cavalos corriam no começo das manhãs, enquanto os páreos noturnos eram reservados para as quartas-feiras. Aceitei a ideia de Adam de marcar o encontro ali com uma pulga atrás da orelha. Será que ele está aprontando de novo?

Empoleirado no seu lugar preferido, em pé na trave superior da grade de segurança, Adam assistia ao páreo com uma tira de papel na mão. Pensei em derrubá-lo com um empurrão. Ele bem merecia.

– Voltou a apostar, bobão – gritei alto para ser ouvido por cima da barulheira.

Sem descer da grade, Adam se virou. O papel desapareceu de sua mão.

– Ficou louco? – ele disse, ao me ver. – Quem falou?

– Eu vi o boleto na sua mão.

Pelo burburinho educado das arquibancadas, o páreo terminou. No Jockey, a torcida reagia às vitórias e derrotas com luvas de pelica e punhos de renda. Bem diferente do rúgbi, meu esporte predileto. Adam espiou o placar eletrônico, a única forma de descobrir o resultado de um páreo para quem não consegue ver a linha de chegada. Fez uma careta, pulou no chão e bateu a poeira da roupa.

– Tá imaginando coisas – ele disse. – Então, qual é a nova?

Eu tinha certeza de que encontraria o boleto escondido na roupa dele, mas não adiantaria nada. Adam já era grandinho para se responsabilizar pelos próprios atos. Saímos de perto da grade, para longe do tumulto festivo da galera não pagante.

Joguei meus planos para fora de supetão.

– Resolvi comprar um carro. Quero trabalhar de taxista.

– É? – disse Adam, torcendo os lábios – Pois eu resolvi comprar o Jockey.

– Tô falando sério. Guardei algum dinheiro. Não é suficiente, mas tenho outros planos.

– Por exemplo…

– Vou pedir a meu pai para levantar um empréstimo.

Mantendo o sorriso de descrédito, Adam olhou em volta, sentando-se na mureta baixa que circulava o Jockey. Deu um tapinha no lugar ao seu lado e eu aceitei o convite.

– Qualquer um pode pedir – disse Adam. – Outra coisa bem diferente é o seu pai concordar.

– Tenho um argumento irresistível para ele. Vou contribuir nas despesas da casa.

– Tá sonhando acordado, Mark. Esquece isso. É a maior roubada.

– Por quê?

– Olha ali – ele respondeu, apontando para a avenida de contorno do Jockey.

O tráfego era intenso naquele horário. Final de expediente. Muita gente voltando para casa. Nada de excepcional.

– E daí? – perguntei.

– Consegue contar os taxis automáticos?

– Claro que não. São muitos.

– Vê algum taxi com motorista humano?

– Não – admiti.

– Então? A realidade entrou na sua cabeça dura?

– Espere um pouco. Venho pesquisando esse assunto há meses. Eu pretendia botar o plano em prática daqui a um ano, mais ou menos. Uma experiência hoje me convenceu a não esperar mais.

– Ah, essa história vem de longe? – disse Adam. – Você é uma mula mesmo.

– Pelo menos ouça o resto.

– O azar é seu. Vá em frente.

Com o discurso pronto, ensaiado inúmeras vezes, observei o fluxo frenético numa das avenidas mais movimentadas da cidade.

– Os carros automáticos são maioria – eu disse. – Cerca de oitenta por cento do mercado. Mas o preconceito contra a inteligência artificial tem crescido cada vez mais. Os poucos taxistas humanos perdem para os carros automáticos em tudo. Segurança, rapidez, pontualidade, tudo. Mesmo assim, eles cobram tarifas mais altas. E o pessoal paga, Adam. Estudei as estatísticas. Os taxis com motoristas rodam ocupados em mais de cinquenta por cento do tempo. Para ter uma ideia do contraste, o índice de ocupação dos carros automáticos não passa de dezoito por cento.

– Por quê? – perguntou Adam.

– Quem sabe? Talvez desconfiança da inteligência artificial. Talvez capricho de uma turma esnobe querendo tirar onda de rico. Sei lá. Se eu tivesse dinheiro para andar de taxi, não pagaria mais caro por um motorista humano. Mas não mando no mercado. Se eles querem pagar, quem sou eu para questionar?

Adam desceu do muro. Andou de um lado para outro, a testa enrugada e o olhar distante. Coçou a nuca várias vezes, fazendo círculos no chão com a ponta do pé. Afinal, endireitou as costas, encheu o peito e soltou o ar devagar.

Em um canto da consciência, ouvi o tiro que dava início a um novo páreo. Se nossa conversa não tivesse outra utilidade, serviria pelo menos para poupar Adam de mais um prejuízo.

– Tudo bem – ele disse. – Não me convenceu, mas sou seu amigo e tenho obrigação de lhe ajudar. Vou entrar de sócio nessa parada.

– Eu não tinha pensado em sociedade – admiti.

– Quer dizer que só sou amigo para dividir conta de bar? Quando se trata de ganhar dinheiro, você quer ficar com tudo?

– Claro que não. Só não previ seu interesse. Você mesmo acabou de dizer que não tem certeza se vai dar certo. Se resolveu participar, maravilha. De onde pretende tirar o dinheiro da sua parte?

Adam estampou o sorriso de uma criança descoberta na presepada.

– Não fui inteiramente honesto, agora há pouco – ele disse.

– Já sei – respondi. – Você voltou a apostar.

– Mas dessa vez deu certo, Mark. Acertei duas trifetas com odds bem acima da média.

– Perfeito, seja qual for o significado disso. Passa o dinheiro pra cá.

– Ainda não troquei os boletos – disse Adam.

– Vá lá trocar, então.

– Pra que a pressa? Quer comprar o carro agora?

– Claro que não, mas o dinheiro vai desaparecer rapidinho se ficar com você.

– Confie em mim.

Em se tratando de dinheiro, não era a política mais sensata. Mas que opção eu tinha? Arrancar dele na porrada? A sociedade facilitaria as coisas. Na melhor das hipóteses, minha poupança alcançaria uma pequena parcela do preço de um carro usado. Sozinho, o empréstimo bancário para completar o valor teria de ser mais generoso do que eu tinha direito de sonhar. A parcela de Adam também ajudaria a dobrar a resistência do meu pai.

Do Jockey, fui direto para casa, meu coração apertado desde a entrada no ônibus. Falar com meu pai a respeito de dinheiro não era uma boa ideia. Nenhuma ocasião era propícia para o assunto. Na semana anterior, ele andava cantando pela casa, quando Lucy pediu dinheiro para comprar o pão. O escândalo durou tanto que a fome passou.

Chegando em casa, atravessei a área gramada de um metro e meio, conferindo o batente vazio ao lado da escada de três degraus que levava à porta da frente. Suspirei aliviado. Se não havia ali uma bicicleta presa à grade por uma corrente que envolvia as duas rodas e o quadro, meu pai ainda não tinha voltado do plantão, embora já passasse das 11h da noite.

O destino me ofereceu a oportunidade de amansar a fera. Descongelei ingredientes do freezer e improvisei um jantar simples. Almôndegas numa sopa de legumes e purê de batatas de acompanhamento.

Mal entrou, meu pai olhou para a mesa de jantar com o cagaço de quem encontra uma granada sem o gatilho.

– O que você aprontou dessa vez? – ele perguntou.

– Nada, pai – respondi. – Só quero pedir uma coisinha de nada, mas posso esperar seu jantar.

Evitei olhá-lo nos olhos. Ele vai querer saber do que se trata.

Meu pai deu de ombros, sentou e devorou a comida com o apetite de um urso. Tive de aplaudir sua presença de espírito. Se ele esperasse para comer depois de ouvir meu pedido, a comida esfriaria e o apetite talvez fosse para o espaço. Por outro lado, o tempo do jantar não faria diferença para a maioria dos problemas. Ele raspou os pratos, limpando a boca no final com a toalha de mesa. Depois, me olhou de cara fechada.

– Volto a perguntar: que merda você fez agora?

– Não fiz nada – respondi. – Só preciso de ajuda num projeto novo.

– Que projeto?

– Vou comprar um carro em sociedade com Adam. Nós queremos trabalhar de taxistas.

– Nem pensar. Se eu tivesse dinheiro para um carro, acha que eu ia andar pra cima e pra baixo naquela porcaria de bicicleta?

– Calma, pai. Não quero seu dinheiro. Tenho uma pequena poupança e Adam vai entrar com metade do valor. Só preciso de um empréstimo no banco para completar a diferença.

– Nesse caso, peça você o empréstimo.

– Como? Não tenho renda comprovada nem para financiar um óculos escuro.

– E de quem é a culpa? Se me ouvisse e se alistasse no exército, não precisaria pedir nada a ninguém.

– Prefiro não discutir isso de novo, pai.

– Nem de carro precisaria, se seguisse meu exemplo. Já tem idade para agir como um homem de verdade, sabia?

Aprisionar meu futuro nas forças armadas australianas não fazia parte dos meus planos imediatos. Nem para as próximas três encarnações. Prefiro trabalhar no circo, engolindo facas ou limpando merda de elefante. Acho difícil entender uma pessoa que nasce livre e abre mão de sua liberdade por vontade própria.

Sentei ao lado do meu pai. Enxugando o suor das mãos na calça, segurei seu braço, pousado no tampo de fórmica barata. O contato físico era raro entre nós, mas eu queria mostrar a importância do pedido. Meu coração palpitava a mil. Se eu falhasse em convencê-lo, não contava com um plano B. Teria de abortar minha largada para o sucesso.

Meu pai baixou a cabeça.

– Nenhum banco aprovaria uma loucura dessas – ele disse.

– Garanto que sim – retruquei. – Em último caso, podemos oferecer o carro em garantia.

– Um taxista não ganha o bastante para pagar as prestações.

– Ganha até um pouco mais. Se quiser, mostro os dados da minha pesquisa de mercado. Com o dinheiro extra, vou contribuir nas despesas da casa.

O olhar de meu pai penetrou meus olhos para fazer cócegas lá atrás, na nuca.

– Você não entende nada de carros – ele disse. – Só quer saber de barcos.

– Não preciso entender. Basta saber dirigir. Isso eu sei.

– Sua irmã e seu irmão não vão gostar de me ver dando dinheiro a você.

– Ninguém me dará nada, lembra? Vou pagar o empréstimo inteiro com meu trabalho e ainda vou contribuir nas despesas de casa. Tenho idade para agir como um homem de verdade, não é?

Desviando o olhar para a rua através da janela protegida por uma grade com desenhos de corações, meu pai se calou. Desejei o poder de fazer o tempo parar. Um espirro naqueles instantes cruciais arruinaria minhas chances. Prendi a respiração e torci para meus irmãos não entrarem na sala. Se eu visse uma mosca pela frente, seria capaz de capturá-la com um golpe ninja.

O tempo andou em câmara lenta. Os segundos passaram mais devagar que a tarde inteira de pescaria com o sr. Bevan. Quanto mais o silêncio demorasse, maiores seriam minhas chances. Quando meu pai não gostava de uma ideia, não perdia tempo para rejeitá-la.

Afinal, ele me olhou e disse:

– Hein?

Uma onda de prazer inundou meu corpo. Pronto, consegui. Levantei e abracei meu pai, que sorriu sem jeito, dando tapinhas nas minhas costas para encerrar logo o abraço. Ele era pródigo em dizer não aos filhos, mas incapaz de dizer sim. Aquela palavrinha de dúvida era o máximo que qualquer um de nós arrancaria dele.

No dia seguinte na primeira hora, fomos ao banco onde ele recebia o soldo, enquanto a máxima se repetia em minha cabeça: um banco só concede empréstimo para quem provar acima de qualquer dúvida que não precisa dele.

O gerente nos recebeu com o sorriso de propaganda de creme dental. A cordialidade se manteve, enquanto meu pai lhe explicou a necessidade de endurecer com os jovens de hoje, do contrário nos tornamos fracotes incapazes. Sem se importar se o interlocutor tinha interesse no assunto, ele emendou na narrativa de suas façanhas em combate. Fomos interrompidos por outro cliente, que o gerente atendeu com uma pressa incomum.

A mania de missionário do meu pai se mostrou oportuna. Na volta, talvez com medo de novas histórias, o gerente se apressou em pedir os documentos necessários, processar o empréstimo e liberar o dinheiro.

A taxa de juros, que grande surpresa, era escorchante.

À tarde, peregrinei com Adam pelas lojas de carros usados em busca de um consenso trabalhoso. Nem o rúgbi, nossa paixão compartilhada, jamais despertou tanta briga, embora Adam fosse um pobre coitado torcedor do Sydney Rabbitohs, enquanto eu curtia o olimpo de conquistas reservado aos fãs do Sydney Roosters.

Ora os carros que eu escolhia pareciam a Adam simplórios demais, ora as escolhas dele eram inviáveis para o nosso orçamento. Perdi as contas das lojas que visitamos. Na milésima tentativa, encontramos nosso ponto de convergência: um carro japonês com apenas 2 anos de uso, equipado com as comodidades esperadas num taxi de categoria intermediária.

Recebemos as chaves e seguimos para o estacionamento. De longe, vi o objeto das minhas esperanças, parado ali com a dignidade de um valete de meio-fraque à espera de seu amo. Enchi o peito.

Adam parecia não caber em si. Ele me olhou, sorrindo de orelha a orelha e disse:

– Parece que estou em um outro mundo.

Um arrepio estranho percorreu meu corpo.

capa-livro

Nimda – a peste branca e o buraco negro

No ano 2.052, o mundo virou as costas à inteligência artificial, apesar de precisar de toda a ajuda possível para combater a peste branca, uma epidemia que ameaça exterminar a raça humana.
Em uma colônia de seres artificias inteligentes e capazes de sentir emoções, uma estrela explode, gerando um buraco negro que ameaça destruir uma sociedade complexa, cuja origem se perdeu nos registros do passado.
Cada um dos dois mundos precisa desesperadamente escapar de seus problemas, mas como?

Nimda - Capítulo 1 - Satisfação garantida

Aos trancos e barrancos, o mundo chegou inteiro a 2.052, mas Hélio preferia ter vivido uns 40 anos antes. No início do século, ele não teria condições de executar sua obra-prima, mas naquela época as pessoas sabiam pelo menos sonhar com as maravilhas da tecnologia. Hélio lembrou de antigos textos que pesquisou em preparação para o debate que ocorreria dali a alguns minutos. Nas primeiras décadas do século, havia quem especulasse sobre a inteligência artificial como o caminho para um paraíso de abundância. “Nós poderíamos ter chegado lá, se as coisas tivessem tomado outro rumo”, ele pensou, meneando a cabeça. Mas não adiantava reclamar sobre o que poderia ter acontecido. O importante era não deixar os erros se repetirem.

Seu companheiro de mesa parecia distraído. Apesar do poder que Nuno concentrava nas mãos, incluindo o de ser seu chefe, Hélio só conseguia encará-lo como amigo. Com a sobrancelha levantada, ele sorriu com o canto da boca e disse:

– Não acredito que largou seus conchavos bilionários para assistir a um humilde empregado.

– Talvez a notícia seja um choque para você – disse Nuno –, mas o mundo não gira em torno da sua augusta presença. Minha namorada vai debater com você e eu vim apenas porque ela fez ameaças que uma mulher não devia fazer a um homem. Ver Hitomi chutar seu traseiro é só um bônus.

Hélio conferiu a hora em seu implante. Ainda tinham algum tempo até o início do painel de debates onde ele pretendia soltar sua bomba. A lanchonete do anexo de visitantes do Observatório Haystack, a noroeste de Boston, pretendia imitar o ambiente de um café francês, com mesas redondas baixas, cadeiras de vime minúsculas, preços bem acima do razoável e nomes pretenciosos no cardápio.

No espaço ao ar livre onde as mesas foram espalhadas, mais da metade dos clientes usava máscaras cirúrgicas, uma prova da propagação do pânico por causa da Peste Branca. Tudo que aquelas máscaras conseguiam era dificultar o proveito com o delicioso aroma do ambiente. “Essa lanchonete pode fingir uma origem francesa, mas eu aposto como esse café é brasileiro”, pensou Hélio, voltando-se para seu amigo.

– É uma pena que você não esteja aqui de verdade. Esse café está gostoso pra burro.

– Como percebeu que não estou aqui? – perguntou Nuno.

– Não foi difícil.

– Essa nova solução de telepresença ainda é só um protótipo – disse o presidente da Halo Corp. – A companhia produtora garantiu que o olho humano não pode diferenciar a holografia do objeto original.

– E não pode mesmo – garantiu Hélio.

– Então… desembucha.

Hélio deu de ombros.

– A tecnologia não pode resolver tudo. Não ainda, pelo menos. Em vez de aparecer de repente feito um gênio da lâmpada, como os usuários de telepresença gostam de fazer, você tentou me enganar, chegando até aqui saracoteando por aquela calçada. Queria me convencer que veio de carro. Até colocou os braços sobre a mesa, quando sentou aqui. Sua solução deve incluir uma boa rotina de leitura do ambiente de destino, mas você não comeu nem bebeu nada, o que despertou minhas suspeitas. Mesmo assim, eu teria dúvidas, se não conhecesse seus hábitos. Você jamais perderia o tempo de transporte, para descer até aqui por tão pouco.

A duas mesas de distância, Hélio viu uma loira linda olhar em sua direção e sorrir de leve. Ele esperou os cinco segundos regulamentares. Como previa, ela mexeu no cabelo. “É o bastante”, decidiu. A telepresença de Nuno ou suas dúvidas sobre o que falaria no painel sumiram de repente. Ele passou a mão sobre a barba por fazer há dias, conferindo mentalmente sua postura: um sorriso de amante latino, braços relaxados, peitorais inchados e foco na garota. Ela não voltou a olhar, um sinal inequívoco para Hélio de que notou sua presença.

Nuno jogou os braços para cima e revirou os olhos.

– Pronto – ele disse –, o cara entrou de novo em modo sedução.

Mantendo a pose, Hélio escreveu em um guardanapo de papel: “Satisfação garantida ou seus beijos de volta”. Depois, chamou seu valete sintético.

– Abel, entregue este torpedo para aquela garota.

A pequena máquina inteligente destacou-se da mochila de Hélio. Desceu agarrando-se à cadeira com a habilidade de um chimpanzé de seis membros, ora usados como pernas, ora como braços. Caminhou entre as cadeiras, segurando o bilhete com um dos membros. Ao chegar no destino, tocou o braço da garota de leve por baixo da mesa.

Ela olhou para baixo, arqueou a sobrancelha e voltou a cabeça, ignorando o insólito mensageiro. Abel repetiu o gesto de chamada. Ela pressionou os lábios e fez uma careta de testa franzida. Esticou o braço devagar para pegar o bilhete com dois dedos, como se tivesse medo de tocar no portador. A garota levou o papel até a altura dos olhos e o leu bem à vista de um cara enorme logo à sua frente, com quem ela conversava. Depois, jogou o bilhete sobre a mesa e retomou a conversa, como se nada tivesse acontecido. Abel correu de volta e subiu até seu encaixe na mochila.

– Vou falar com ela – anunciou Hélio.

– Negativo – disse Nuno. – Isso aqui é uma holografia – acrescentou, apontando para o próprio peito. – Não posso fazer nada, se aquele sujeito ao lado dela se irritar com a sua insolência. Você é o ativo mais valioso da empresa. Não pretendo permitir que perca essa cabeça de vento.

Levantando-se como se Nuno não tivesse falado nada, Hélio foi até a mesa da loira. Aquele jogo era uma das melhores coisas da vida. Ele se sentia como uma criança em um parque de diversões.

– Bom dia – disse ao chegar. – Gostou da minha proposta?

A garota e o grandão não responderam. Apenas se inclinaram na direção um do outro com os lábios comprimidos, reprimindo uma risada. O cara com ares de guarda-costas olhou para longe e levantou a máscara branca, para tomar um gole de sua xícara de café. Não era uma recepção hostil. Para Hélio, isso já contava como um ótimo começo. A garota lhe dirigiu um olhar sério e penetrante.

– Não gostei – ela respondeu. – Meu noivo gostou menos ainda.

– Noivo? – disse Hélio, olhando para o acompanhante. – Você tem bom gosto, sabia?

A garota e o grandão caíram na risada.

– É o cúmulo da cara de pau – ela disse. – Você não tem vergonha de me assediar assim, bem na frente do meu noivo?

– Se você se sentiu incomodada, peço desculpas e me retiro.

– Não – ela disse sorrindo. – Não é incômodo. Sente-se.

Hélio obedeceu e chamou o garçom, pedindo um café.

– Eu me chamo Hélio e vocês?

– Sou Stella e este é Marco. Não é meu noivo. É meu irmão.

– Nem por isso sou menos ciumento – disse Marco.

– Você também veio por causa da mensagem? – perguntou Stella.

– Que mensagem? – estranhou Hélio.

– Uma coisa linda – disse a loira. – O Observatório vai enviar uma mensagem para o espaço, tentando falar com aliens.

“Boa sorte para eles”, pensou Hélio, especulando consigo mesmo por que uma instituição respeitável como o MIT se meteria numa bobagem dessas. Stella parecia encantada com a perspectiva e Hélio considerou que sua opinião sincera naquele caso não seria bem recebida. Resolveu desconversar.

– Nem sabia dessa mensagem – ele disse. – Vim para participar de um debate, mas agora perdi o interesse.

Stella espalmou as mãos e disse:

– Eu sabia que já tinha visto seu rosto em algum lugar. Você é o Hélio Carvalho do painel sobre ciência e tecnologia. O cara famoso que construiu o anel orbital, não é?

– Quem construiu foi a Halo Corp. Só fiz os desenhos.

Os cantos da boca de Stella se inclinaram em apreciação. Marco também meneou a cabeça, erguendo as sobrancelhas. A reação dos dois fez um calor subir pela face de Hélio. Ele tentou esconder o rosto por trás do café fumegante, mas evitou beber, com medo de queimar a língua. Stella o salvou.

– Tenho uma sugestão – ela disse. – Venha conosco ver o projeto da mensagem e depois vou ver como você se sai no debate.

Conhecer os detalhes de um projeto maluco não era exatamente uma perspectiva animadora, mas Hélio resolveu embarcar. Ele ainda tinha tempo de sobra e queria tirar da cabeça sua tarefa indigesta que se aproximava.

– Combinado – ele disse.

Ao levantarem, Hélio lembrou de Nuno, que já tinha desaparecido. Ele ofereceu o braço a Stella, mas ela dirigiu um olhar contrariado para o nicho da mochila onde Abel se encaixara e tomou distância. Hélio não insistiu. Marco mostrou o caminho até um prédio que parecia ser o mais bonito do complexo. No topo, uma redoma esférica com cerca de vinte metros de diâmetro envolvia o radiotelescópio principal. O revestimento parecia ser de papel, mas provavelmente era de teflon com fibra de vidro.

No hall de entrada, eles pararam para apreciar o interior. O recinto enorme servia apenas ao radiotelescópio, que repousava no centro. A iluminação indireta dava ao local a aparência de um salão de museu. Marcando a realização de um evento especial, várias tendas de pano foram espalhadas próximas às paredes. Ali também, a maioria do público procurava se proteger da Peste Branca com máscaras cirúrgicas inteiramente inúteis, se houvesse algum agente de contágio. Um senhor grisalho com costeletas grossas e compridas que conversava a poucos metros da entrada percebeu a chegada do trio, abriu um sorriso e se aproximou.

– Bom dia, dr. Carvalho – ele disse. – Sou o professor Bill Mitchell, diretor do Observatório Haystack. É uma honra recebê-lo. Eu tinha esperanças de convidá-lo a visitar este projeto, depois da sua palestra.

– Minha amiga Stella fez o trabalho pelo senhor – disse Hélio, apontando para sua linda companheira, que parecia encantada em seu papel de destaque. – Este é seu irmão Marco.

– Muito prazer – disse o professor.

– A quem devemos procurar para obter mais informações sobre esse projeto? – perguntou Hélio.

– Terei o maior prazer em acompanhá-los – disse Bill Mitchell. – Como outros projetos similares – ele acrescentou, enquanto abria os braços para iniciar um passeio pelo local –, trata-se de uma tentativa de contato com civilizações distantes, por meio do envio de um pacote de sinais de rádio. Alguns desses sinais já viajam pelo espaço há séculos, originados de antigas transmissões de televisão unidirecional. Mas são conjuntos de dados distorcidos, sem representatividade na nossa cultura.

– Discordo – disse Hélio. – A televisão representava muito bem a imbecilidade humana.

O diretor sorriu. Diplomaticamente, não fez comentários.

– Veja – ele disse –, nosso objetivo não é enviar uma mensagem elegante, com um olhar positivo sobre a humanidade. Seria outra forma de enganar os destinatários. Queremos uma visão mais “pé no chão”, digamos. Procuramos envolver aspectos culturais irrelevantes para os tomadores de decisão, embora fundamentais do ponto de vista do cidadão comum, de classe média. Na verdade, a mensagem não passa de uma coletânea de vídeos dos participantes.

– Entendi – disse Hélio. – Vocês têm esperança de alguém receber esses vídeos algum dia?

– Não temos ilusões nesse sentido – reconheceu o diretor Mitchell. – Cá entre nós, aproveitamos a popularidade da vida extraterrestre, para divulgar o trabalho regular de astronomia do Observatório. Você sabe: aquelas vastas extensões de nada, onde nada acontece. Quando colocamos homenzinhos verdes no cenário, atraímos mais atenção.

“Ah rá”, pensou Hélio. “Eu sabia que tinha alguma coisa por trás disso.”

– Por outro lado – disse o diretor –, posso ver a descrença na sua expressão. Mas nada nesse ramo pode ser garantido com certeza absoluta.

– O que quer dizer?

– Já observamos diminuições bruscas no brilho de estrelas, erupções repentinas de raios gamas e uma série de outros fenômenos. Em 2.017, detectamos um objeto, chamado Oumuamua, cuja natureza não conseguimos identificar com certeza, além do fato de ser originário de outro sistema estelar. Em cada um desses casos, nossos colegas fazem um esforço danado para encontrar explicações naturais, por mais exóticas que sejam, apenas para não admitir uma causa mais simples, embora mais improvável.

– A vida lá fora – sugeriu Stella.

Bill Mitchell acenou com a cabeça. Hélio sorriu. O diretor não deixava de ter razão.

– Nós queremos participar – disse Stella.

– Ótimo – respondeu o diretor, levando-os a um pequeno stand com divisórias de pano, onde havia equipamentos posicionados.

Acionada a gravação, Hélio pensou em desistir, sentindo-se meio ridículo, embora também excitado. “É apenas uma brincadeira”, ele decidiu. Ouviu a fala de Stella, depois limpou a garganta, encarou o gravador e disse:

– Gostaria de encontrar vocês, caros seres de outro planeta; ou satélite; ou cometa; ou estrela, quem sabe. Queria descobrir como vivem e lhes dizer como somos. Quando estudarem esses vídeos, verão que gostamos de falar do passado, viver pouco o presente e sonhar com um futuro melhor. Quando eu era criança, costumava me imaginar numa conversa animada com uma criatura alienígena, nascida e criada em um lugar bem diferente da Terra. Conhecer pessoas novas da nossa própria espécie já é uma experiência deliciosa. É como um universo diferente, com outro passado, outras opiniões, outras vontades, enfim, tudo novo. Conhecer alguém de outra espécie então, nem se compara. Seres inteligentes de outros lugares devem ter evoluído para viver em harmonia com o universo e seus habitantes. Em uma galáxia rica como a nossa, podemos aproveitar o melhor do convívio, se um dia as distâncias forem superadas. Por isso, em meus sonhos de criança, sempre imaginei nosso contato como algo bom para os dois lados.

Quando terminou, Hélio não sabia onde colocar as mãos, ainda se sentindo fora do seu elemento. Bill Mitchell desligou os equipamentos e retomou a seu papel de anfitrião.

– Agora, se não me engano, o senhor tem poucos minutos para chegar ao seu próximo compromisso. Vou levá-los por um caminho mais curto.

Passando por corredores internos, de acesso exclusivo dos funcionários, o diretor os conduziu até um auditório amplo, com capacidade para mais de 1.000 pessoas, já quase inteiramente tomado. Agradecendo ao gentil diretor, Hélio despediu-se de Stella e Marco, que se dirigiram à plateia. Seguiu depois para o tablado dos palestrantes.

Na mesa de debates, Hélio torceu o nariz ao ver Hitomi Mitsumi sentada na posição oposta à sua. Ela lia um documento a partir do implante e fingiu não perceber sua chegada. “Taí um bom exemplo de embalagem melhor que o conteúdo”, ele pensou. Pequena como era, a japonesa surpreendia com curvas acentuadas, em particular nas regiões mais apreciadas pelos brasileiros. Seu estilo de vestir, com cortes, decotes e transparências, não prejudicava em nada a apresentação. Se pelo menos fosse possível conversar com ela por uns meros 5 minutos, sem ter vontade de torcer o seu pescoço… Hélio não conseguia entender como Nuno a aturava.

– Bom dia, professora – ele disse. – Pronta para a batalha?

Hitomi empertigou-se, dirigiu-lhe um olhar enviesado, mas não se levantou.

– Não me lembro de ser convidada para uma batalha – ela respondeu, voltando o olhar para frente. – Vim a um encontro científico. Tem certeza que entrou na porta certa?

Hélio não se preocupou em responder. Ele já ia tomar seu lugar, quando chegou Robert Dunes, reitor do MIT. Hélio esperou os cumprimentos de praxe como uma criança bem comportada. Abel, no entanto, não partilhava da mesma disposição. Ele circulou pelo palco, subiu na mesa, testou dispositivos de som e só voltou para seu nicho na mochila quando se deu por satisfeito com as condições do lugar.

Do centro da mesa, o reitor deu início ao evento. Sua fala seria captada e transmitida pelo implante coclear. Se Hélio quisesse falar em português, o sistema faria a tradução simultânea e projetaria a versão do discurso em inglês.

– Sejam todos bem-vindos ao Observatório Haystack – disse o reitor. – Hoje, ouviremos duas pessoas notáveis no mundo da ciência. A profª. dra. Hitomi Mitsumi tem-se destacado no campo da física de partículas. Formada em física pela Universidade de Todai, no Japão, onde também completou seu mestrado, a dra. Mitsumi nos deu a honra de fazer seu programa de doutorado aqui no MIT, onde também leciona, enquanto conduz suas pesquisas na fronteira da ciência de partículas. O dr. Hélio Carvalho graduou-se em mecatrônica pela Universidade de Brasília, sua cidade natal. Depois, transferiu-se para a prestigiadíssima Universidade de Tsinghua, na China, para terminar seu mestrado em robótica e realizar pesquisas de doutorado na área de redes neurais. Muitos o conhecem atualmente por seu papel crítico na construção do anel orbital. Na qualidade de professor visitante, o dr. Carvalho falará primeiro sobre o tema deste painel: a ciência e a tecnologia no mundo de hoje. Com a palavra, dr. Hélio Carvalho.

Enquanto recebia os aplausos, exibindo o que ele esperava ser uma expressão neutra, Hélio sentia seus músculos tensos e as mãos frias. Não seria fácil, mas ele não recuaria. Era agora ou nunca.

– A tecnologia existe acima de tudo para resolver os problemas humanos – Hélio declarou a título de introdução. – Não consigo pensar em um problema mais implacável para o mundo de hoje que a Peste Branca, uma epidemia capaz de erradicar a vida humana na Terra em poucos meses. Nem preciso me preocupar em alarmar demais o público aqui presente. Sei como estamos cientes dos riscos que corremos. Costumo ouvir que nenhum esforço é demais na busca de uma cura ou de um tratamento para esse mal.

Enquanto falava, Hélio observava rostos acenando em concordância. Essa boa vontade tinha os minutos contados.

– Infelizmente, o caminho oferecido pela tecnologia com as melhores chances de sucesso nessa guerra contra a Peste Branca vem sendo reiteradamente desprezado. Por um medo patológico capaz de superar até mesmo o terror da morte, o mundo voltou as costas às possibilidades oferecidas pela inteligência artificial.

Imediatamente, surgiram os primeiros murmúrios. Hélio sabia que teria pouco tempo dali em diante. Precisava falar rápido.

– Nem a roda, nem o fogo, nem a escrita, nada na história da raça humana se compara à IA em termos de promessas de uma vida melhor. Aqui mesmo neste Observatório, há um projeto de comunicação com seres extraterrestres, mas eu me pergunto como a humanidade pretende se comunicar com uma raça alienígena, quando morre de medo de seres que ela mesma é capaz de criar? Chega a ser cansativo quantas vezes histórias de ficção exibiram máquinas inteligentes como agentes do extermínio da raça humana. A bem da verdade…

Levantando-se de sua posição na terceira fila à esquerda, uma mulher interrompeu a fala de Hélio com o rosto vermelho e a testa enrugada.

– Pensei que viria ouvir sobre o anel orbital e as maravilhas da ciência moderna – ela disse. – Por que trazer um assunto tão inconveniente a este encontro?

– Não tenho certeza qual dos dois assuntos a senhora acha inconveniente – disse Hélio –, mas suspeito que prefira conversar sobre a Peste Branca a ouvir argumentos em defesa da inteligência artificial.

– Não se faça de engraçadinho – disse a senhora.

– Desculpe se a ofendi – disse Hélio. – Só acho que precisamos entender o potencial da IA no combate à Peste Branca.

– Uma coisa não tem nada a ver com a outra – disse um jovem com o casaco do MIT, provavelmente estudante.

– Pelo contrário – disse Hélio –, posso provar que nada é mais pertinente, nesse momento, que a inteligência artificial.

As pessoas começaram a se levantar e sair. Era o momento de sua cartada pessoal. Hélio não queria mexer em coisas do seu próprio passado, mas era inevitável. Desde quando aceitou falar naquele painel, já previa que as circunstâncias o levariam a um beco sem saída. Ele suspirou e falou:

– Em termos de doenças debilitantes e incuráveis, tirei o bilhete premiado na minha infância. Tive uma combinação de leucemia com diabetes precoce perto dos 10 anos. Não lembro de quase nada desse período, a não ser que vivia entrando e saindo de hospitais. Não tinha forças nem para ir ao banheiro. Minha mãe, economista-chefe de um dos fundos de investimentos mais bem-sucedidos do Brasil, abandonou a carreira para cuidar de mim. Meu pai procurou especialistas americanos, europeus e tudo o mais. Os dois esgotaram o patrimônio da família, atrás de uma cura.

Parando para tomar um gole d’água, Hélio notou várias pessoas já na porta de saída esperarem para ver onde ele queria chegar. Se suas desventuras de garoto servissem para incutir juízo nas pessoas, ele pagaria o preço de bom grado.

– Minha mãe soube de um hospital em Barcelona que andava desafiando a comunidade médica, para empregar uma solução de inteligência artificial em casos complexos. A rede de IA tinha acesso a bases de dados mundiais. Ela comparava detalhe por detalhe do caso colocado para sua análise com os bilhões de prontuários disponíveis. Geralmente, era uma ferramenta de diagnóstico, mas minha situação já era bem conhecida. Eu precisava mesmo de uma solução. A rede encontrou um caso em Taizhou, na província chinesa de Jiangsu. Um menino com a minha idade e os mesmos problemas foi tratado com uma combinação de medicamentos tradicionais pesados, ervas raras chinesas, acupuntura e exercícios de meditação. Até hoje, ninguém sabe explicar em termos clínicos o que aconteceu, mas ele foi curado… e eu também.

– Mentira – gritou alguém na plateia.

– Vá cuidar dos seus problemas! – exclamou outro.

Um homem com o físico de quem adora musculação alcançou o tablado alto com um único pulo. Ele se dirigiu à posição de Hélio com o dedo em riste, dizendo:

– É uma vergonha que o MIT patrocine essa palhaçada. É uma vergonha que você tente explorar o sofrimento das pessoas para defender suas ideias malucas. Volte ao seu lugar e não se meta mais a falar sobre o que não conhece.

Posicionados nas laterais da plateia, os seguranças do evento não conseguiram impedir a intrusão. Com atraso, eles reagiram e seguraram o homem pelos braços, que começou a se debater, enquanto o público protestava contra a ação dos seguranças.

Para não deixar a situação fugir do controle, Hélio reagiu.

– Parem – ele disse. – Vou me retirar, afinal já falei o que vim falar.

Com um gesto de cabeça, ele se despediu de Hitomi e do Reitor Dunes, sem saber se seus olhares fixos no chão eram por causa da sua própria atitude ou da reação do público. Conferiu a plateia. Stella e Marco tinham sumido. Dando de ombros, ele lamentou perder a oportunidade de reencontrar a loira, mas depois ponderou : “Pior para ela.”

Nimda - Capítulo 2 - O controle da festa

Primo, ativação: L13W79, deixou de lado a bancada de instrumentos onde trabalhava, para divagar mais uma vez sobre os Construtores. No treinamento básico recém-terminado, ele ficou sabendo do mistério em torno da espécie que construiu Nimda, o mundo onde ele fora ativado. Para Primo, o mistério era irresistível. O conceito dos Construtores era simples. As unidades H como ele e a própria estação onde todos viviam se originaram de um processo artificial. Tal processo poderia ser idealizado e executado por alguma outra entidade artificial, que por sua vez também poderia vir do trabalho planejado de mais alguém. Mas a cadeia de produção seguiria seu curso até determinada espécie lá no início, criada por processos espontâneos, resultantes apenas da interação de forças naturais.

Apesar disso, Primo não tinha conhecimento de uma única evidência em Nimda da existência dos Construtores. A Colônia já vinha em operação há mais tempo do que ele seria capaz de imaginar. Dezenas de gerações de unidades H deixaram extensos registros nos bancos de dados, embora nenhuma informação fosse anterior à primeira geração. Na imaginação de Primo, em determinado momento, nada existia. No instante seguinte, centenas de unidades H e a própria estação surgiam no espaço sem qualquer explicação.

Ao longo dos 600 ciclos de existência, Nimda já visitara inúmeros setores da galáxia. Em cada um deles, o departamento de astronomia era responsável por uma varredura das redondezas, na busca por sinais de rádio ou por evidências de uma estrutura como Nimda. Iniciando sua vida útil neste departamento, Primo agora fazia parte da busca. O silêncio e o vazio eram as respostas do espaço.

O tutor de Primo chegou a mencionar a hipótese de o mundo dos Construtores se localizar, na verdade, em outra galáxia. Seria a explicação perfeita para o vazio de evidências. Primo adorava pensar nessa hipótese. Ela abria a possibilidade de haver outras colônias como Nimda espalhadas pelo universo. Em torno do mundo dos Construtores, haveria milhões de seres diferentes. Ou até bilhões, trilhões, por que não? A rigor, isso ainda poderia ocorrer dentro da própria galáxia local. Nimda não conhecia sequer 1% de 1% de 1% das estrelas dessa galáxia.

“Por que não havia registro dos Construtores dentro de Nimda?”, Primo se perguntou mais uma vez. Ainda mais intrigante: “Por que os Construtores abandonaram Nimda e seus habitantes à própria sorte?” Se Primo fosse o criador de uma estrutura e de uma sociedade tão complexas, mesmo não podendo ficar por perto, faria o possível para manter contato e acompanhar o progresso de sua criação. Ele chegava a se perguntar se a ausência de informações teria um significado mais trágico. Os Construtores podiam ter existido em algum momento, mas se encontravam agora extintos.

Diante de tantas hipóteses fantásticas, a tarefa de conferir cálculos e observações ultrapassadas, atribuída a Primo, parecia o cúmulo da perda de tempo. A Colônia era baseada no fundamento supremo do interesse coletivo acima das considerações individuais, mas Primo não acreditava no valor ou mesmo na necessidade de sua tarefa. Os astrônomos veteranos pareciam envolvidos com algum problema sério e deram a ele um trabalho apenas para colocá-lo fora do caminho.

Primo levantou seus 230Kg de seu posto de trabalho, decidindo perambular pelo departamento. Por ser novato, ele ainda achava fascinante o método de caminhar das unidades H. A cada passo, uma de suas três pernas passava entre as outras duas, deslizando colada ao campo magnético embaixo de sua gigantesca barriga. Enquanto passeava, ele esperava um dos veteranos perceber seu desinteresse, designando-o para outro trabalho, onde ele pudesse aprender alguma coisa. Mas os astrônomos nem percebiam sua presença, concentrados em suas próprias tarefas. Primo se aproximou de um dos grupos de trabalho. Ouviu a discussão por algum tempo, sem compreender a maior parte dos termos utilizados. Só sabia se tratar de algum defeito da estrela dominante no setor de Nimda.

– Qual é o problema? – ele perguntou em canal aberto.

Ninguém respondeu. Repetindo a pergunta, ele tocou no ombro de um dos veteranos, que se virou com uma expressão hostil.

– Não há problemas – ele disse. – Volte ao seu trabalho.

Um verde sólido dominava os rostos dos astrônomos.

– Então, por que todo esse medo? – perguntou Primo.

– Saia daqui – disse o veterano. – Não tem nada para fazer?

– O brilho dessa estrela deve ser mesmo dessa cor? – insistiu Primo.

– Sim, agora nos deixe trabalhar.

A projeção passou a exibir uma segunda estrela em torno da primeira. Espiando por cima dos ombros dos outros, Primo apontou para a imagem em movimento.

– Como essas estrelas se mantêm tão perto uma da outra? – perguntou.

O mesmo astrônomo de antes se voltou, falando com ferocidade na voz.

– Você é chato assim por vocação ou aperfeiçoa o talento sempre que pode?

– Acabei de ser ativado – disse Primo. – O que acha?

– Vá cuidar das suas obrigações ou saia da sala, mas não interrompa.

– Já terminei minha tarefa.

O astrônomo avaliou Primo da cabeça aos pés. Se ele pedisse um relatório, Primo não saberia como responder. Ele tinha mentido descaradamente. Para sua sorte, o problema deles devia ser realmente sério.

– Então, vá conferir os fluxos de saídas das antenas de rádio.

– É para já – disse Primo.

A sala principal do departamento de astronomia tinha mais quantidade do que variedade. Junto às paredes, ficavam as bancadas com monitores dos equipamentos externos de observação, sondagem e medição. Primo se dirigiu à bancada das antenas. Passou uns dez graus examinando cada monitor, certificando-se que os dados de entrada eram apenas ruído sem valor.

Por simples impulso, resolveu apontar a antena na direção da periferia da galáxia, uma região remota, onde predominava o sinal de origem do universo, monótono e aleatório. Em uma das mudanças de alvo, por distração, errou o comando, fazendo o equipamento passar do ponto. Prestes a corrigir o erro, Primo se surpreendeu com uma particularidade um tanto rara do setor apontado: a completa ausência de gigantes azuis.

Ele desistiu da correção e apontou a antena para o centro do setor. Começou a percorrer o espectro de ondas eletromagnéticas. Na radiofrequência da linha de hidrogênio, a antena captou sinais repetidos e alternados. “Nenhuma surpresa”, ele pensou. A natureza produzia esse tipo de sinais, mas havia um detalhe intrigante: 2400 sinais, nem mais, nem menos. Um número exato demais, redondo demais.

De repente, o fluxo passou para uma fase aleatória, onde permaneceu por um longo tempo, até voltar ao sobe-e-desce dos grupos alternados. Primo coçou a cabeça. “Por essa, eu não esperava”, pensou. Ele não conseguia imaginar um fenômeno capaz de gerar, ao mesmo tempo, sinais constantes durante um tempo e aleatórios em outro. “A não ser que…” Começou a considerar a hipótese de sinais artificiais. O fluxo poderia ser uma mensagem de inteligências alienígenas.

Primo sentia vontade de sair correndo e levantar um de seus colegas veteranos pela cintura. Incapaz de se manter parado até o final da gravação, saiu do módulo de varredura e foi até uma mesa próxima, transformando a superfície em área de trabalho.

Antes de fazer qualquer coisa, ele precisava planejar uma estratégia. Se aqueles sinais faziam parte de uma mensagem enviada por alguma espécie inteligente, Primo se via obrigado a considerar os riscos de seu trabalho para a Colônia. Se fosse uma espécie hostil, poderia haver perigos desconhecidos. Mesmo assim, o recebimento e o exame da mensagem não faria mal algum, desde que ele não tomasse nenhuma atitude adicional. Nesse caso, ele pensou: “o que os mensageiros poderiam fazer, sem saber a localização de Nimda? Explodir uma bomba em si mesmos?”

Havia também outra hipótese, que fazia Primo sentir como se pudesse sair voando pela sala. A mensagem poderia vir diretamente dos Construtores. Se isso fosse verdade, até mesmo suas expectativas mais otimistas se tornariam pálidas. Não havia tempo a perder.

Independente da natureza dos mensageiros, Primo deveria procurar uma maneira fácil e direta de interpretar o conteúdo da mensagem. Eles seriam os primeiros interessados na compreensão do que diziam. Chaves de decodificação ou criptografia eram improváveis. A mensagem devia conter apenas informações diretamente assimiláveis. Só faltava encontrar o método.

Com as mãos trêmulas, Primo tentou várias estratégias de leitura, sem sucesso. Quanto mais fracassava na interpretação da mensagem, mais determinado ficava em ler seu conteúdo. A batalha terminou, quando ele se lembrou que a maneira mais fácil de transmitir uma mensagem é por imagens. Se Primo considerasse os sinais como pontos cheios e vazios, em vez de zeros e uns, formaria uma imagem.

Depois de reprogramar o processador, o primeiro resultado obtido foi desconcertante: o desenho um tanto precário, embora reconhecível, da galáxia local. Mais chocante ainda, o minúsculo cinturão onde Nimda se localizava fora marcado com um círculo.

“Eles sabem nossa localização?”, estranhou Primo. “Impossível.” Se eles estivessem tão próximos a ponto de detectar Nimda, a Colônia também poderia vê-los e o departamento de astronomia não encontrou nada. A página seguinte mostrou outra imagem, como se fizesse um zoom sobre o cinturão local e deixasse de lado o resto da galáxia. Desta vez, a posição de Nimda foi relegada a um dos limites exteriores do círculo de marcação. Na imagem seguinte, outro zoom. Os mensageiros queriam, na verdade, informar sua própria localização, marcando um novo círculo numa região um tanto afastada, formada por uma nuvem de pequenas estrelas. Somente na quarta página, uma única estrela se encontrava isolada, nada mais que a integrante sem características marcantes de um grupo grande e tediosamente comum de estrelas.

Primo deixou seus três braços caírem ao lado do corpo. Suas esperanças de encontrar o lar dos Construtores começavam a esmorecer. Ele continuou a examinar os dados cabisbaixo. Alguém tocou em seu ombro.

– Por que saiu do seu posto? – perguntou seu tutor Controle, ativação: X8888Y.

Ainda concentrado nas repercussões de sua descoberta, Primo demorou para registrar a pergunta de Controle e ainda mais para respondê-la.

– Cansei daquele trabalho – ele disse. – Vim para o monitoramento das antenas. Você não vai acreditar no que descobri.

– Quem autorizou o abandono da sua tarefa anterior?

– Você não se importará com isso, quando souber da minha novidade.

– Muito bem – decidiu Controle. – Vamos ouvir.

– Captei uma mensagem de alguma espécie inteligente habitante dessa galáxia.

Primo sorriu, abriu os braços e esperou uma reação eufórica de seu tutor, mas ele ficou calado. Depois de um silêncio desconfortável, Primo ficou impaciente.

– Ouviu o que eu disse?

– Claro – respondeu Controle. – O que descobriu na mensagem?

– Só a mensagem não basta?

– Então, você é daqueles se conforma com o bastante?

– Na verdade, não – disse Primo. – Consegui decifrar o método de transmissão. A mensagem parece ser organizada na forma de imagens.

– Parece ser? Não tem certeza?

– Bem, tenho certeza até aqui, mas continuam chegando novos dados. Só quando receber a mensagem completa, posso ter certeza sobre o conjunto. Agora, precisamos estudar o conteúdo da mensagem.

– Por que ainda não fez isso? – perguntou Controle.

– Acabei de decifrar as primeiras páginas!

– Bem, vamos examinar seu trabalho inacabado.

– Que trabalho? Aquela revisão horrível de observações antigas?

– Voltaremos a ela em momento oportuno, mas eu me refiro a esse outro trabalho inacabado: dessa suposta mensagem. Você começa a se transformar em um especialista de tarefas abandonadas. Mostre o que tem por enquanto.

Não pela primeira vez, nem talvez pela última, Controle deixava Primo com vontade de gritar, para ele entender os limites do razoável. Primo conversara com outras unidades H novatas, ativadas mais ou menos na mesma época dele, e ninguém tinha um tutor tão inflexível. Por outro lado, Controle compreendia como poucos o inconformismo de Primo com as regras coletivas. Para a Colônia, as unidades H não passavam de peças de uma engrenagem, ativadas com a finalidade de cumprir os propósitos comunitários. Mas Primo queria ter sua individualidade. Seu tutor era o único indivíduo capaz de entender sua fascinação com o mistério dos Construtores, um tabu na Colônia cujo interesse era encarado com maus olhos.

Primo mostrou a localização dos mensageiros.

– Acha que podem ser os Construtores? – ele perguntou.

– Não me surpreende que essa seja sua primeira e única hipótese – disse Controle –, mas é difícil dizer com tão pouca informação. Quais os resultados da observação direta pelo telescópio?

– Ainda não fiz isso – disse Primo.

– Por acaso, espera um convite?

Primo foi até a bancada dos telescópios com Controle em seu encalço. Os instrumentos se encontravam travados na observação da estrela local. O redirecionamento dependia da autorização do diretor do departamento. Controle foi até ele.

– Em nome de todos – ele disse, sem se identificar.

– E de cada um, Conselheiro Controle – respondeu o diretor. – Sou Matriz, ativação: ALD43T.

– Libere um dos telescópios para uso do meu aprendiz – ordenou Controle.

– Conselheiro, nós trabalhamos em um projeto de prioridade absoluta. Não podemos dispor de nenhum equipamento para instrução de novatos.

– Deixe o julgamento das prioridades para mim. Não mencionei tarefas de instrução. Preciso de um telescópio de imediato.

Matriz baixou os olhos e exibiu um rosto vermelho. Primo suspeitava que aquela raiva se voltaria contra ele mais tarde, mas o telescópio foi liberado. Com habilidade, Controle apontou o equipamento para a estrela de origem da mensagem.

– Procuramos por sinais de vida inteligente – ele disse.

– Que tipo de sinais? – perguntou Primo.

– Do tipo que não fazem perguntas desnecessárias. Uma civilização tecnológica em torno daquela estrela deve saturar o espaço em volta de ondas eletromagnéticas dos equipamentos de comunicação. Dificilmente, seremos capazes de observar alguma estrutura orbital ou naves de qualquer espécie, mas pode ser possível detectar os subprodutos de sua existência. Faz ideia do que isso significa?

– Alterações de calor em áreas supostamente vazias? – arriscou Primo.

Controle dobrou o canto da boca e assentiu com um movimento quase imperceptível de cabeça. Primo sentiu a energia fluir pelo seu corpo com mais suavidade, depois daquela aprovação indireta. Eles examinaram as imediações da estrela por um tempo enorme, talvez mais de 60 graus. A volta já se encaminhava para o final e eles continuavam ali.

Primo notou quando a equipe de astrônomos foi substituída pelo turno seguinte e ficou impressionado de ninguém ter manifestado interesse no que eles faziam. O problema da estrela local devia ser de fato muito sério.

Depois de bastante trabalho, o sistema estelar dos mensageiros foi mapeado e compreendido. Tratava-se de uma estrela solitária, um fato por si só peculiar. A estrela era envolvida por uma couraça de asteroides nas fronteiras mais externas. No volume interior, oito planetas cumpriam órbitas mais ou menos elípticas, quase todos dentro de um mesmo plano. Havia quatro gigantes gasosos nas órbitas mais externas, um anel simples de asteroides e mais quatro planetas menores mais próximos da estrela.

O planeta dos mensageiros era o terceiro de dentro para fora. Como Controle previu, transmissões eletromagnéticas envolviam o local e nada mais. Nenhum sinal de estações espaciais ou qualquer outro artefato de alta tecnologia. Nem mesmo os planetas vizinhos mostravam sinais de colonização.

– Não parece interessante – disse Controle.

Primo sentia como se os braços pesassem uma tonelada.

– Mesmo assim, as transmissões eletromagnéticas são evidências de vida inteligente – ele disse.

– Isso, eu não posso negar.

– O que faremos de agora em diante?

Seu tutor sorriu pela primeira vez, desde que chegou.

– Não adotei esse nome à toa. Vamos assumir o controle da festa.

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Nimda II - nada é o que parece

Milhares de anos no futuro, a estação Nimda faz o Salto para a Terra, onde encontra a humanidade imersa em um cenário desolador. O que falta em progresso da civilização, sobra em conflitos. Há duas religiões em guerra. Uma delas, predominante, é liderada pela tirania de seu sumo-sacerdote, que parece ter poderes sobrenaturais. Outra, clandestina, sobrevive a duras penas, apesar de ter seus adeptos perseguidos pelos inimigos declarados. Nesse ambiente de tensão, Nimda surge, trazendo ainda mais problemas. É preciso escolher um lado e descobrir como vencer alguém que parece imortal, vivendo como um rei, no Palácio de Buckingham.

Nimda II - Capítulo 1 - Por favor me ajudem !

O jovem corria por sua vida. Se havia um momento para o sagrado Aipaloovik lhe conceder sebo nas canelas, esse momento era agora. O coração espancava seu peito com a força de uma marreta. O ar, gelado lá fora, queimava sua garganta feito brasas vulcânicas. As pernas praticamente se moviam sozinhas, alheias à dor de cada passada.

Ele entrou por uma viela estreita, ladeada por sobrados decrépitos de alturas irregulares. Tremendo sem controle, sondou as redondezas. No térreo, as portas permaneciam fechadas naquelas primeiras horas da manhã. O silêncio do lugar só era rompido por sua própria corrida sobre o piso irregular. O jovem suspirou ao passar por um mosaico de janelas altas, aqui e acolá. Umas abertas, outras fechadas, outras despedaçadas. Nenhuma ao seu alcance.

Seu corpo reclamava na forma de transpiração. Um suor viscoso, primitivo, fedorento. Sem parar, lançou olhares fugazes para as lajes projetadas sobre o vão aberto da rua, altas demais para oferecer uma salvação. Atravessou a sombra no chão dos varais vazios de roupas. Aquilo parece uma teia de aranha, pensou com um calafrio. Sacudiu a cabeça. Não preciso disso agora.

Conferindo a retaguarda a cada instante, o jovem avistou o paladino em seu encalço. Surgindo na viela a partir de um acesso à direita, firmou os pés no chão e derrapou sobre o solo empoeirado até parar do outro lado da rua. Em seu rosto, uma expressão animalesca. Se o paladino parasse, ciscando o pé na poeira e bufando pelo nariz enfeitado com uma argola, a imagem seria perfeita.

Àquela altura, o manto do inimigo já se achava ensopado de suor da cintura para cima e imundo de poeira da cintura para baixo. O jovem o viu estender os braços em sua direção, fechando as mãos cobertas com luvas de couro, como se quisesse esmurrá-lo a distância. Nada aconteceu, a não ser o bruxulear do ar em frente aos braços do carrasco. Parecia as miragens vistas através do calor do deserto. Naquela manhã gelada e úmida, o fenômeno se tornava ainda mais assustador.

O jovem disparou por um caminho à direita no fim da rua. Escapou por um triz da explosão da quina de parede ao seu lado. Os destroços se espalharam, parecendo atingidos por um aríete, embora não houvesse nada visível ali.

A perseguição vinha de longe, mas o rosto do paladino não demonstrava cansaço. Ele corria apenas o suficiente para manter sua vítima ao seu alcance. O jovem limpou o suor do rosto com o braço, sem parar para tomar fôlego. alcançava o limite de sua resistência rapidamente. Dê-me forças, Aipaloovik, ele pediu. Não quero morrer nas mãos dos seus inimigos. Pelo menos, o risco de captura encharcava seu corpo com energias extras.

À sua frente, casas arruinadas desciam um longo declive, que acabava de forma abrupta pouco mais de duzentos metros adiante. Ali, tinha início uma área de vegetação fechada e irregular. Até o tronco das árvores era coberto por trepadeiras. Espiando o percurso sem reduzir a velocidade, o jovem enxergou seu objetivo e santuário muito além.

A distância era inalcançável, bem depois do bosque lá embaixo. Com um suspiro interior, baixou os olhos. Ele precisaria de um coração, pernas e pulmões novinhos em folha para chegar aonde queria. Se pelo menos alcançasse o bosque, encontraria algum lugar para se esconder. Até lá, sua única opção se resumia a correr desenfreado, sugando o ar com força e ignorando os protestos dos músculos. Também não podia esquecer de desviar-se dos disparos invisíveis do inimigo.

Dobrou esquinas em zigue-zague. Pulou por cima de galinhas, cacarejando em fuga. Contornou uma pequena área aberta, talvez usada pelas crianças como campo de futebol. Desviou-se de uma caçamba velha de lixo, sem sentir o cheiro de podridão em volta. Viu-se diante de três degraus baixos e largos, que tentou ultrapassar com um único pulo.

Tão logo aterrissou, a tragédia o alcançou.

A vista turva e a iluminação deficiente o impediram de perceber as irregularidades no piso da parte inferior da pequena escada. Seu pé direito caiu com uma metade apoiada sobre o solo e outra sobre um buraco raso. O impacto da queda provocou o som de algo se partindo na região do tornozelo e o fez rolar pelo chão. A dor se espalhou pelo corpo com a velocidade do vento em sua pele. Era como uma mão gigantesca esmagando-lhe o pé, esmigalhando osso por osso. Ele dobrou o corpo para lado bom, flexionou a perna boa apoiando as mãos no chão e ficou em pé. Deu alguns pulos com uma perna só, então a dor o obrigou a parar. Voltou a cair. Suas opções, já escassas desde o começo da caçada, desapareceram por completo.

Ele se pôs a gritar.

– Socorro! Socorro! Por favor me ajudem!

O paladino alcançou o alto da escadaria traiçoeira. Reparou sua vítima no chão e esperou. O jovem encarou seu inimigo de queixo erguido, sem se levantar. O paladino inclinou-se para frente, colocando as mãos sobre os joelhos e arfando. Um sorriso irrompeu em seu rosto. Como uma aranha com a vítima enredada em sua teia, ele não se aproximou de imediato. O sorriso se alargou. Seus olhos brilharam, enquanto sua presa permanecia indefesa.

– Socorro! Socorro! – repetia o jovem aos berros, com o pouco de ar que seus pulmões ainda podiam prover.

Pouco a pouco, portas e janelas se abriram nas vizinhanças. Moradores surgiram, esfregando os olhos e cobrindo a claridade repentina com as mãos. À medida que perceberam o combate, os expectadores empertigaram o corpo, sacudidos por algum espasmo muscular involuntário. Alguns homens, com expressões mais determinadas ou empurrados por suas mulheres, ensaiaram uns poucos passos de aproximação.

Espreitando os arredores com a testa franzida, o paladino se limitou a levantar o braço direito flexionado, a palma da mão voltada para cima. Dali saiu uma chama azul brilhante. Foi o bastante. Os moradores recuaram e o paladino fez a chama desaparecer.

– Sua alma vai arder no inferno! – praguejou o jovem, arrastando-se para trás sem perceber.

Enquanto descia os degraus com a tranquilidade de um passeio de domingo, o carrasco ignorou a maldição com o gesto ritual. Colocou a mão direita espalmada sobre a testa e a esquerda, na parte de trás da cabeça, na nuca.

– Quem é abençoado pela graça do Kalki, sagrado seja o seu nome, não tem nada a temer, herege.

– Um dia, você verá o tamanho do seu erro.

O homem descartou o comentário com um golpe casual de mão no ar, mantendo os olhos travados em sua vítima.

– Bem, como vamos prosseguir? – perguntou. – Você aceita a conversão?

– Conversão? – repetiu o jovem, com uma careta de quem experimentava comida podre. –  Não quero virar um zumbi como você? Prefiro morrer mil vezes.

– Isso, nós podemos providenciar. Pra falar a verdade, também prefiro assim, mas o Kalki, em sua infinita misericórdia, exige que sua ralé tenha a oportunidade de ver a verdade. Não compreendo a utilidade de permitir a trastes como você a esperança da segunda vida, mas essa é a vontade do Kalki. Assim será feito.

Um sorriso se insinuou no canto da boca do rapaz.

– Questionando seu precioso Kalki, paladino? – ele perguntou.

O paladino retesou os músculos e endureceu a postura. Parecia ter levado um tapa na cara.

– Se eu já não tivesse motivos de sobra para lhe matar, só essa pretensão seria suficiente. Hoje você morre.

– Os paladinos ganham uma estrelinha dourada para cada pobre coitado que matam? – insistiu o jovem.

– O quê? – perguntou o soldado.

– Se você bater em criancinhas, ganha pontos no concurso de paladino do mês?

– Esses disparates de nada adiantarão, herege. A segunda vida deixou de ser uma opção. Vou mandá-lo ao vazio, com a eternidade inteira para ruminar seus pecados.

– Eu tenho muitos pecados – disse o jovem. – Talvez não dê tempo de ruminar todos eles.

Como um náufrago em busca de uma tábua de salvação que nunca viria, o jovem circulou o olhar pelos espectadores. Eles não ousariam enfrentar o paladino, pensou. A bem da verdade, ele próprio jamais tomaria uma atitude pública contra um agente do Kalki. A polícia religiosa punia quem interferisse em seu trabalho, inocente ou culpado, com as mesmas penas dos integrantes ativos do movimento de resistência.

Ainda assim, valia a pena retardar o desfecho. O jovem não tinha pressa para terminar aquela conversa.

– Como me descobriu? – perguntou.

– Acredita mesmo que vou responder?

– Por que não? Vou morrer daqui a pouco. O segredo morre comigo.

– Nunca encontrei tamanha arrogância – disse o paladino. – Por acaso, acha que não respondo para esconder um segredo? Pouco me importa o que você sabe, herege duma figa. Não respondo apenas porque não quero. Não tenho satisfações a lhe dar.

Faltava uma cartada. O jovem nunca foi bom no pôquer, mas não custava tentar.

– E os meus segredos? – ele perguntou – Por acaso lhe interessam? Dependendo dos agrados, posso ser convencido a lhe contar detalhes importantes dos meus companheiros. Se os benefícios forem realmente bons, talvez até pense melhor naquela história de conversão.

– É tarde demais para se arrepender.

– Por quê?

– Alguns entre nós preferem aprisionar trastes do seu tipo e extrair informações à força. Para seu azar, não sou um deles. Tudo virá a seu tempo, tenho certeza. Sua resistência ridícula será dominada, quando o Kalki se decidir por esse caminho. Você teve sua chance. Agora, prepare-se para morrer.

Com os braços estendidos, o paladino fechou os punhos enluvados. A dor no tornozelo do jovem não era nada em comparação com a humilhação de morrer sozinho, como um animal vira-latas. Sua crença mais profunda seria sua ruína. Ele gemeu com o esforço de se colocar de pé. Fazia questão de enfrentar seu destino com dignidade. Alguns moradores entraram em casa e fecharam as portas. O jovem não podia culpá-los. Outros ficaram. Nos olhares duros, não havia compaixão.

O silêncio baixou sobre o local. Até os pássaros em volta interromperam a cantoria. Pareciam adivinhar o ódio predominante. O suor escorreu pela testa do jovem, unindo-se às lágrimas que desciam pelo pescoço e levavam embora as dúvidas e os temores. Nos momentos finais, uma dormência tomou conta dele, um vazio de emoções que baixou como uma benção de Aipaloovik. A atuação do Plexo paralisou o jovem da cabeça aos pés. Se o vento alterasse seu equilíbrio, ele cairia no chão como uma estátua de pedra. O paladino sacou sua adaga e se aproximou, no rosto, um sorriso de vitória. Impotente, o jovem manteve-se consciente até o momento final, quando seu algoz cortou-lhe o pescoço e o enviou para a inconsciência final.

Nimda II - Capítulo 2 - Como se atrevem ?

Satsuki estendeu o corpo exausto da musculação em sua poltrona preferida, de paquera com o sono, pensando como seria bom ter controle sobre a própria vida. Sem disposição para levantar a cabeça, espreguiçou-se, virando de lado para prender os longos cabelos pretos e lisos herdados da mãe. Só quando pensava em seu corpo esguio e bem distribuído gostava de ter nascido sua filha. Em meio ao torpor de prazer, Satsuki ouvia sons que diziam ser de pássaros, uns bichos voadores da Terra que ela só conhecia por imagens. Os sons eram super relaxantes e a origem não importava. A varanda de sua casa era, tipo, um exagero de grande e se abria para um parque em frente, onde era bom fazer corridas curtas. Aquele local gigante era uma exigência dos donos da casa. Os grandes doutores Hitomi Mitsumi e Hélio Carvalho precisavam receber ali seus amigos sem fim.

Satsuki não alimentava esperanças de ser um dia tão popular quanto seus pais. Ela vivia a uma galáxia de distância das suas façanhas. Sem a dra. Mitsumi e o dr. Carvalho, os mil e poucos seres humanos e as milhões de unidades H daquela Colônia teriam batido as botas na crise do buraco negro, que ocorreu antes de ela nascer. As pessoas sentiam um prazer especial em repetir um milhão de vezes os acontecimentos quase trágicos daquela época. Só deixavam um detalhe de fora. Satsuki tinha certeza que o Coordenador da Colônia, seu querido amigo Primo, exerceu um papel tão importante no caso quanto seus pais, mas isso nunca era mencionado.

A porta de vidro que ligava a varanda à sala de jantar abriu com um sussurro suave. Satsuki abriu os olhos para acompanhar a chegada de seu pai arrastando os pés e esfregando os olhos. Ele desabou na poltrona ao seu lado, que rangeu em protesto contra o peso acima do normal.

– Bom dia, Pequena – ele disse, em português.

– Em nome de todos – ela respondeu, na língua padrão, determinada a manter os costumes da Colônia.

– Nadou muito?

– Hoje era dia de musculação, pai.

– Ok, musculou muito?

– Sim – disse Satsuki, com um sorriso discreto.

A máquina auxiliar de serviço se aproximou em seu silêncio ninja de sempre.

– Bom dia, dr. Carvalho, Satsuki. Qual o seu pedido para o café da manhã? – perguntou.

Com um sorriso torto, o pai olhou de volta.

– Tá vendo? “Bom dia!” Todos nesta casa agem como verdadeiros terráqueos.

Cansada demais para pensar numa resposta, Satsuki só deu de ombros. Seu pai virou-se de volta para a máquina e disse:

– Bom dia, Henri. Quero um cappuccino, um suco de uva, waffles com geleia de laranja, um prato de aveia com leite, algumas salsichas e dois sanduíches de queijo cheddar.

– Só isso? – perguntou a máquina. – Está sem apetite hoje?

– E você, está procurando emprego de humorista?

Apesar de reconhecer aqueles nomes, originados de comidas da Terra, Satsuki sabia que nada daquilo poderia existir de fato em Nimda. Eles viviam no espaço interestelar a milhares de anos-luz da Terra. Seu pai não receberia os artigos de verdade, mas versões aperfeiçoadas nas fábricas da Colônia. Ela nunca provou os produtos originais, mas duvidava que alcançassem o nível de qualidade disponível ali. Os alimentos eram cópias desenvolvidas ao longo do tempo, resultado de uma combinação de processos supercontrolados até o nível molecular. Na Terra, segundo lhe contaram, a produção envolvia, tipo, enterrar comida na areia e criar bichos para depois matá-los. Que nojo! Satsuki não acreditava como alguém conseguia engolir as comidas da Terra depois de conhecer o processo verdadeiro de produção.

– Não posso trazer o queijo cheddar – respondeu Henri. – O senhor continua proibido de comer esse tipo de gordura saturada, sabe disso.

O pai estreitou os olhos e empurrou para trás com cuidado a confusão de mechas de cabelo espalhadas.

– ELI, dê um jeito nisso – ele ordenou.

A voz que parecia vir de todos os lados ressoou na varanda e disse:

– Henri tem razão.

– Não me venha com gracinhas. Só quero que ele traga o meu pedido.

Quando seu pai se dirigia ao computador central de Nimda como um amigo das antigas, Satsuki se sentia um pouco maior e mais forte.

– Ainda não conseguimos manipular o metabolismo de gordura dos humanos – insistiu ELI. – Sem antídotos seguros contra seus altos níveis de colesterol, queijos amarelos estão definitivamente fora do seu cardápio.

Seu pai jogou a cabeça para trás e olhou para o teto. Depois, voltou-se na direção de Satsuki.

– Minha saúde, meu metabolismo e o diabo que os carregue vão bem, obrigado – ele disse –, mas essa máquina maldita se recusa a obedecer e ELI é um inútil. Um dia, vou reprogramar essas desgraças! Elas vão ver quem manda por aqui.

Satsuki sorriu e apontou para o rosto de Henri, exibindo, naquele momento, um púrpura claro.

– Você sabe que essa cor significa vergonha, não sabe?

– Que se dane o que ele está sentindo.

A porta divisória sussurrou mais uma vez. Hitomi chegou, brindando a todos com seu olhar de faca afiada.

– Bem – ela disse –, Hélio parece aborrecido, Henri, envergonhado, Satsuki, divertida. Então, Hélio deve ter pedido algo que não pode comer. Considerando a hora da manhã, eu diria queijo cheddar.

– Você é uma coisinha fofa, Meia Porção – disse Hélio –, mas essa sua mania não é nada atraente.

– Só quando funciona contra você – respondeu Hitomi, inclinando-se para beijar o marido. – E eu odeio esse apelido.

– Comida que dá prazer não deveria ser proibida – comentou Satsuki.

– Eu sei bem como você pensa – respondeu sua mãe, com a mão espalmada em sua direção –, mas este assunto não lhe diz respeito. Estou preocupada com a saúde do seu pai.

– Vai cuidar das celulites dele também?

As bochechas erguidas de sua mãe e os lábios contraídos num esforço de conter o riso eram um prêmio aceitável para Satsuki. Sua mãe se voltou para Henri, sem conseguir falar por uns instantes.

– Traga meu café da manhã de sempre – ela disse, afinal. – O dele, traga como ele pediu, sem os excessos. Obrigada.

– E para você, Satsuki? – perguntou a máquina.

– Uma barra de cereais e uma solução energética. Obrigada, Henri.

A mãe se curvou e beijou sua testa.

– Ohayō, Satsuki-chan – ela disse.

– Em nome de todos – respondeu Satsuki, ainda na língua padrão.

– Como foi a reunião da volta passada, Floquinho? – perguntou o pai.

– Sem grandes novidades – respondeu Hitomi. – Você deve ter notícias mais interessantes. Terminaram os testes com os novos PLD’s?

Pronto, acabou meu sossego, pensou Satsuki. Lá vem o lero-lero dos cientistas. A qualquer momento, um deles tentaria testá-la, tipo, perguntando o que é um PLD. Ela responderia que é um troço gigante, maior que o bairro onde eles moram, que faz alguma parada esquisita no espaço e leva a Colônia para outro lugar da galáxia. Com isso, esgotaria seu conhecimento do assunto. Bufando, seria obrigada a encarar o olhar de desânimo dos pais com uma filha tão burra.

Apesar do orgulho pelas realizações dos pais, Satsuki reconhecia desde criança sua completa falta de vocação para a ciência. Não tinha plano algum para o futuro. Sua única certeza era que jamais seria cientista. Antes de completar a primeira sessão do primeiro ciclo do programa de treinamento de física teórica, só para alcançar o mínimo aceitável, ela precisou colar no primeiro teste, obrigar seu amigo Zero a fazer os exercícios de fixação e, quando nada disso foi possível, estudou como uma louca, sem entender patavina do que lia.

Apesar de tudo, sua burrice era só uma coceirinha comparada com o problema das origens. Por terem nascido na Terra, seus pais compartilhavam com os seres humanos em Nimda uma saudade doentia daquele planeta. Como se os confortos oferecidos pela Colônia fossem insignificantes diante das maravilhas de um passado distante. O sangue de Satsuki fervia com as comparações desfavoráveis a Nimda. Ela parecia uma estranha, uma idiota no meio dos seres humanos, só por defender seu mundo de nascimento. Se isso não fosse o bastante, o chato do seu irmão Lucas, apesar de também não ter nascido na Terra, adaptou-se melhor aos costumes dos pais. Quando via um humano chamar outro de “conterrâneo”, Satsuki tinha vontade de esmurrar os dois.

– As coisas parecem em ordem – o pai respondeu depois de uma longa pausa. – Só saberemos de verdade quando colocarmos os PLD’s em operação.

– Por falar nisso – disse a mãe –, mais uma briga estourou ontem no Conselho.

– Eles ainda não concordaram?

– Não. E Nuno perdeu a paciência de novo. A coisa quase sai do controle.

O assunto provocava um aperto no coração de Satsuki, mas ela preferiu não se intrometer. Henri trouxe os pedidos e os colocou sobre a mesa. Satsuki pegou a barra de cereais e deixou o energético para depois. Espreguiçando-se na cadeira, observou com um sorriso carinhoso seu pai atacar a comida como se estivesse há dias sem comer.

– Mas você não disse que a reunião foi sem novidades? – ele perguntou, entre mastigadas.

– Qual é a novidade? Mais um quebra pau do Nuno por causa do próximo destino de Nimda?

– Desculpe, Floquinho, mas concordo com ele nesse ponto. Não podemos admitir outra solução.

– É aí que os dois se enganam. Sei o que estou fazendo.

Ninguém falou nada por alguns instantes. Sua mãe tomou um gole de café, segurando a xícara com o dedo mindinho levantado. Seu pai comia como se não houvesse amanhã.

– Estou esperando – ele disse. – O que você está fazendo?

– É um assunto complicado – respondeu sua mãe, com o ar professoral que Satsuki desejava evitar mais do que o rangido de vidro sobre vidro. – Admitir apenas um caminho equivale mais ou menos a entregar os pontos. Preciso esperar o momento certo. Nossa posição é fraca demais. Um grupo minúsculo de seres humanos não tem chances em um mar de unidades H, se elas decidirem por uma direção diferente.

– Sei como elas são cabeças-duras.

– E mesmo assim nunca aprendeu a lidar com elas. Agora há pouco, queria impor sua vontade à força sobre Henri.

– Não mude de assunto, Floquinho. Falamos sobre a escolha do próximo destino de Nimda.

– Compreenda, Hélio-Kun: não podemos forçar uma decisão. Queremos voltar para a Terra, claro, mas eles precisam ser convencidos de que isso é bom para a comunidade.

Satsuki fingia não ouvir, mas era incapaz de continuar calada. A declaração casual de sua mãe era mais do que poderia suportar. Ela tirou os pés da mesa e sentou-se ereta, deixando a indignação tomar conta de seu corpo.

– Como se atrevem? – ela perguntou, com a voz mais aguda do que gostaria. – Quem garantiu que “nós queremos” voltar para a Terra? Por que raios isso seria “bom para a comunidade”? Por acaso alguma sessão geral decidiu isso enquanto eu dormia ou algo assim?

– Lá vem a outra – disse o pai, jogando as mãos para o alto. – Isso é só uma conversa, Pequena. Nada foi decidido e não houve sessão geral, claro. Mas nós somos humanos. A Terra é o nosso  lar, Doce de Coco, independente da sua opinião.

Seu pai costumava desarmá-la com seu jeito brincalhão, mas não desta vez, e certamente não desprezando sua opinião.

– Fale por você, pai. Eu nasci aqui, cresci aqui, gosto daqui e não tenho interesse em ir para a Terra. As latas também não querem. Nosso mundo é este. É Nimda.

– Seu local de nascimento não muda nada – disse sua mãe. – A Terra é de fato o seu mundo, tanto quanto é o nosso – acrescentou, separando as palavras mais importantes com pausas maiores.

– É de fato? – imitou Satsuki, fazendo questão de colocar as mãos na cintura e reproduzir a voz superior da mãe. – Quem lhe deu o direito de decidir qual mundo devo considerar meu lar?

– Não se trata disso, meu amor. A Terra é nosso planeta de origem. É onde a história da humanidade aconteceu. O tempo que passamos aqui não significa nada de uma perspectiva histórica.

– Obrigada por reduzir minha vida inteira a nada!

Sua mãe suspirou e voltou as atenções para o café da manhã. Seu pai segurou seu braço.

– Sua mãe não quis dizer isso, Satsuki, sabe disso.

Ela bufou, sem querer concordar nem discordar.

– Tente ver a questão por outro ângulo – continuou seu pai. – As unidades H estão todas aqui. Elas formam uma comunidade unida, com uma história única e muita coisa bonita para nos ensinar. Mas nós somos alienígenas aqui. Um conjunto tão pequeno de humanos poderia ser considerado só uma irregularidade no padrão. Enquanto isso, temos nosso próprio mundo, com gente igual à gente, com necessidades iguais às nossas, com defeitos iguais aos nossos, com costumes iguais aos nossos.

– Não me venha com essa babaquice, pai. Minha mãe usa aquela parada lá do Cofre, “quântico não sei o quê”, para acompanhar o que está rolando na Terra. Sei disso há maior data. Primo já me contou tudo. Os caras estão se matando por lá e ninguém sabe nem explicar direito por quê. É, tipo, um bando de doidos, fanáticos por umas coisas sobrenaturais. Não tente me dizer que sou parecida com eles, porque não sou.

Satsuki recebeu com prazer o olhar de surpresa dos dois. Com um sorriso, alcançou o copo de energético.

– Você não deveria saber tanto – disse sua mãe, abandonando a xícara. – O aparelho que mencionou é um sensor de entrelaçamento quântico. Ele…

– Não quero saber – cortou Satsuki.

– Tudo bem, não entrarei em detalhes. Basta saber que ele nos traz imagens da Terra neste exato momento, apesar de estarmos a dois mil anos-luz de distância. Infelizmente, como o som é formado por ondas de ar e não por ondas eletromagnéticas, só vemos as imagens, sem som.

– Dá no mesmo – insistiu Satsuki, sem querer confessar que não entendeu. – Eles estão ou não se matando?

– Sim, houve mortes – admitiu sua mãe. – Mas o conhecimento da situação deveria levá-la justamente à posição contrária. Essa loucura dos atuais habitantes da Terra é causada por um fenômeno chamado decaimento. Indiretamente, estamos aqui por causa desse problema. Ele diminui pouco a pouco e já é bem fraco, o que só aumenta nossa urgência. Se tantos dos nossos semelhantes sofrem por causa da ignorância e do misticismo, você não considera nossa obrigação ajudá-los?

– Não – garantiu Satsuki.

– Mais sensibilidade, minha filha.

– Posso dar minhas razões antes de ser considerada uma imbecil?

O rosto de sua mãe continuava impassível, como sempre. Ela deu de ombros e gesticulou para Satsuki falar.

– Eu nasci a partir da transa de vocês, enquanto as latas nascem em uma fábrica, de um processo mecânico. Para vocês, isso é o bastante para me considerarem mais parecida com aquela cambada de lunáticos da Terra do que com meus amigos da Colônia.

– Descontando os insultos desnecessários, é isso mesmo.

– Pois eu não acho. Não sei falar difícil como vocês e não vou nem tentar explicar como me sinto. Só tenho certeza de uma coisa: se a escolha for entre os interesses da maioria desta Colônia e os interesses dos seres humanos na Terra, eu fico com Nimda.

– Tem esse direito – disse seu pai, com uma expressão satisfeita.

– Por acaso perguntaram lá na Terra se eles querem sua ajuda?

Sua mãe abriu a boca, mas o pai pediu com um gesto sua vez de falar.

– Sua identificação com as latas é louvável, Pequena.

– Não diga isso, pai. Vocês pensam o contrário.

– Não é bem assim. Pode não acreditar, mas eu também sinto carinho pelas unidades H. E sua mãe também. Elas nos acolheram na comunidade e nos tratam bem. Na verdade, se considerarmos a energia gasta com a produção da nossa comida, talvez sejamos tratados com mais atenção do que as próprias unidades H.

– E somos mesmo – concordou Satsuki.

– Mas deixemos de lado, só por um momento, os interesses dos humanos lá na Terra e das unidades H. Já parou para pensar no desejo das pessoas daqui de Nimda que nasceram na Terra? Nas pessoas como eu e sua mãe?

– Claro, pai, mas aí também não consigo entender qual é a parada. Vocês são cientistas. Não seria preferível, tipo, viajar pelas estrelas?

Fez-se um silêncio desconfortável. As refeições esquecidas sobre a mesa.

– Não tenho uma resposta pronta, Pequena. Que sonho espetacular seria esse hein? A oportunidade de ver com nossos próprios olhos fenômenos estelares extraordinários. Seria mais que qualquer pessoa poderia pedir. Ou sonhar.

– E então ? – insistiu Satsuki.

– Mas a Terra ainda está lá – comentou sua mãe.

– É verdade – concordou o pai. – Se pudéssemos voltar só mais uma vez, tenho certeza de que me livraria dessa obsessão. Estaria pronto para seguir em frente, onde a Colônia nos levasse. Eu queria pisar uma vez mais no chão que me viu crescer. Nem preciso voltar ao Brasil, provavelmente deserto a esta altura. Bastaria voltar ao nosso planeta, sobrevoar seus oceanos azuis, sentir sua gravidade sobre meu corpo, ouvir o ruído de um animal qualquer, provar os sabores naturais da nossa terra.

Vários minutos se passaram, sem ninguém se manifestar. Satsuki quebrou o silêncio.

– A Colônia não vai concordar com essa loucura. Esperem para ver o que as latas dirão a respeito.

Sobre os Autores
Alexandre 0
Felipe 6

Alexandre Nobre e Felipe Nobre – pai e filho. Os dois sempre foram fãs de ficção científica e fantasia desde crianças. Não é absurdo pensar que a paixão do pai pelo gênero tenha contagiado o filho.

Seus ídolos literários abrangem grandes nomes do passado, como Arthur C. Clarke, Issac Asimov, J.R.R. Tolkien, e ícones modernos como Brandon Sanderson, George Martin e J.K. Rowling, passando por nomes nem tão conhecidos mas igualmente geniais, como Poul Anderson.

A dinâmica da dupla consiste em uma complementação perfeita, em que as deficiências de um são supridas pelas habilidades do outro.

Depoimentos

Nimda II – assim como Nimda – foi um dos textos de ficção mais bem elaborados em termos de universo e estrutura narrativa que já passaram pelas minhas mãos. Não bastasse a história interessante criada pelos autores, há uma simbiose perfeita entre ficção e ciência costurada ao longo dos capítulos – como convém a uma boa obra de ficção científica. Nimda II aprofunda ainda mais os dilemas apresentados no primeiro volume e nos brinda com um texto envolvente e irresistível.

Ronize Aline – Escritora e Consultora Literária

É muito fácil, para o leitor, criar empatia com Hélio e Primo. São personagens adoráveis. Foi feita uma pesquisa caprichada para que o enredo obedecesse a uma lógica interna, no que diz respeito a todas as questões ligadas à ciência.

Lúcia Facco, O Agente Literário

Os autores não se perdem na narrativa, seguem um caminho linear e encaixam as duas histórias numa só de forma natural. O final é excelente, a forma como os autores juntaram os elementos da história funcionou muito bem.

Thiago Lee, crítico literário

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